Quotas no Tribunal Constitucional: a sério que discutimos outra vez a balela do mérito?

É com enorme espanto que constatamos que existem vozes de deputadas/os do PS que ainda têm dúvidas quanto à virtude do reforço das leis que favorecem a igualdade de género em cargos públicos.

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A Constituição não usa, uma única vez que seja, a palavra deputada, primeira-ministra, ministra, secretária de Estado ou juíza. Escrita numa época em que os IV e V Governos Provisórios (e, depois, o II Governo Constitucional) não incluiam uma única mulher entre os seus membros, foi preciso esperar pela tomada de posse de Leonor Beleza – primeiro, como secretária de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, entre 1982-1983, e depois como ministra da Saúde – para que o despacho de nomeação presidencial publicado em Diário da República se referisse à sua condição feminina de “secretária de Estado” e, subsequentemente, de “ministra”.

E ainda assim, como relata a própria, não raras foram as vezes em que Leonor Beleza foi forçada a recusar-se a sentar em mesas de reunião e de conferências, sem que antes a placa alusiva a “ministro da Saúde” fosse substituída pela que expressava, como a Constituição e a Justiça impõem, a sua condição feminina.

Só desconhecendo a História Constitucional e a luta pelos direitos das mulheres se espanta quem invoca o texto literal da nossa Constituição para obstaculizar mais um progresso civilizacional: a garantia de que as mulheres – que, segundo a Pordata, representavam, em 2022, 64% das magistradas de carreira – podem aceder ao Tribunal Constitucional, em condições de igualdade material.

Estivemos e servimos como secretária e secretário de Estado no Governo que foi responsável por mais um grande avanço civilizacional. Pela primeira vez, em 2015, quer o Regimento do Conselho de Ministras/os, quer a Lei Orgânica do Governo passaram a usar linguagem neutra, referindo-se, expressa e simbolicamente, àquela parcela até ali silenciada do órgão executivo: às suas “ministras” e “secretárias de Estado”. Hoje, desde 2022, temos um Governo (quase) paritário, com tantas “ministras” quanto “ministros”.

Enquanto estivemos e servimos como secretária de Estado e secretário de Estado, fomos responsáveis pela apresentação de duas propostas de lei ao Parlamento essenciais para a continuação do progresso da condição das mulheres na vida pública e que viriam a ser aprovadas pelo Parlamento: a) a Lei que fixou uma quota de género de 20%, a partir de 1 de janeiro de 2018, e uma quota de género de 33,33%, a partir de 1 de janeiro de 2020, nos conselhos de administração e outros órgãos executivos e nos órgãos de fiscalização das empresas públicas (incluindo locais) e nas empresas privadas cotadas em bolsa (cfr. Lei n.º 62/2017); b) a Lei que fixou uma quota de género de 40% dos dirigentes da administração direta e indireta do Estado, bem como nos órgãos de gestão das instituições de ensino superior públicas e nos órgãos das ordens profissionais e de outras associações públicas (cfr. Lei n.º 26/2019).

Também nessa altura, ouvimos e lemos o lamento crítico e situacionista do (pretenso) mérito. Suportámos, em incontido silêncio, a aleivosia de que a imposição de quotas de género impedia a avaliação e o acesso dos melhores (nunca das melhores) aos cargos de topo da administração pública e das empresas (públicas e privadas). As insinuações de que a Cresap não podia ficar impedida de indicar 3 (três) homens – sempre os homens associados ao (pretenso) mérito – apenas porque a lei impunha a observância de um critério de paridade que corrigia a ancestral desigualdade entre homens e mulheres no acesso a cargos públicos e de direção.

Ora, como é evidente, a invocação de um (pretenso) mérito masculino para obstaculizar a implementação – geral e abstrata – de uma lei de quotas de género serve apenas o propósito de ocultar a realidade: homens e mulheres são igualmente capazes para o exercício de qualquer função. E, inversamente, umas e outros serão tão incompententes quanto as/os demais, independentemente da sua condição feminina ou masculina. Justamente por isso, a própria Lei n.º 26/2019 salvaguarda, no seu artigo 5.º, n.º 2, que, ao selecionar os dirigentes da administração pública, a Cresap pode ser dispensada de assegurar essa paridade na lista de candidatas/os que propõe ao Governo, quando não seja possível fazê-lo em função de critérios de mérito. Ou seja, pode propor uma “short list” de 3 (três) mulheres quando verificar que não há nenhum candidato masculino que reúna as condições de mérito indispensáveis.

É, por isso, com enorme e incontido espanto, que constatamos que existem vozes (e escritos) de deputadas/os do Partido Socialista que ainda têm dúvidas quanto à virtude do reforço das leis que favorecem a igualdade de género em cargos públicos; e, em especial, quanto às propostas que serão votadas, amanhã, na Assembleia da República, para criação de quotas de género no Tribunal Constitucional. Em 41 anos de história, este tribunal nunca teve uma mulher como presidente. Das/dos 81 juízas/es que o compuseram, 66 foram homens e apenas 15 mulheres, equivalendo a apenas 19% do número total. Até ao momento, apenas uma mulher foi escolhida, por cooptação (ou seja, pelos pares), como magistrada daquele tribunal. Atualmente, as magistradas em exercício representam apenas 25% do Tribunal Constitucional.

Em artigo publicado no PÚBLICO, esse grupo de deputadas/os expressa o seu receio que a introdução de quotas de género no Tribunal Constitucional reforce a impossibilidade de formular um juízo individualizado sobre o mérito de cada candidata/o, “na medida em que se limitam a fazer acrescentar (à secundarização da avaliação dos méritos individuais de cada candidato) um critério de género (por si, alheio também a qualquer mérito individual) à feitura da lista”.

Julgarão as deputadas/os em causa que não existem suficientes magistradas e juristas de mérito que, preenchendo os requisitos constitucionais do artigo 222.º, n.º 2, da Constituição, possam ser eleitas ou cooptadas para o Tribunal Constitucional? Teremos regredido assim tanto, ao ponto de voltar a questionar a circunstância de o princípio da igualdade, vertido no artigo 13.º da mesma Lei Fundamental, constituir um critério interpretativo inultrapassável das demais normas constitucionais e de se fundar como um parâmetro de igualdade material que corrige as desigualdades de partida? Como já outras demonstraram, o requisito de exercício de função de magistrada/o e de reconhecimento de mérito jurídico não invalida o acrescento de uma condição de género que é mesmo constitucionalmente imposta, quer pelo referido artigo 13.º, quer pelos artigo 9.º, alínea h), e 109.º, que impõem ao Estado a adoção de normas de incentivo à correção de desigualdades e a consequente interpretação conforme e sistemática das demais normas constitucionais (incluindo o artigo 222.º, n.º 2).

Outra vez, a balela do mérito. Como se só houvesse homens competentes, à altura do exercício de cargos públicos. E como se as mulheres que, hoje, exercem cargos públicos por força das sucessivas leis de quotas não tivessem demonstrado total aptidão para o seu exercício. Inclusive, as deputadas que, hoje, se opõem a que outras mulheres beneficiem do mesmíssimo regime que lhes permitiu aceder ao hemiciclo parlamentar.

Como é evidente, essas objeções quanto à impossibilidade de juízo individualizado do mérito aplicam-se igualmente aos conselhos de administração de empresas públicas e privadas, aos conselhos diretivos de institutos públicos, aos órgãos colegiais diretivos de universidades públicas, de institutos politécnicos e de ordens profissionais. Cuja composição, aliás, é – não raras vezes – muito inferior à do Tribunal Constitucional, que é composto por 13 (treze) magistradas/os. Dúvidas nunca houve sobre a constitucionalidade dessas soluções. E, esperamos nós, dúvidas não deverá haver, de futuro, quanto à justeza de medidas de discriminação positiva que contribuam para uma sociedade mais plural e inclusiva.

O Tribunal Constitucional não é um órgão qualquer. É o órgão jurisdicional encarregue de defender o contrato social celebrado entre todas/os e de garantir que os direitos e liberdades individuais – inclusive das minorias – são defendidos e efetivamente implementados. O pluralismo endémico e a mundividência diversificada das/os magistradas/os que o compõem apresentam-se essenciais para garantir que todas as visões e vozes do Povo em nome de quem essa Justiça Constitucional é exercida são expressas e ouvidas pelo respetivo colégio.

Na sequência da revisão constitucional de 1997 – que consagrou o direito de participação política “de homens e mulheres”, alterando o artigo 109.º da Constituição, e que aditou a alínea h) ao artigo 9.º, fixando como tarefa fundamental do Estado promover a igualdade entre homens e mulheres –, a Lei da Paridade foi aprovada em 2006, ainda que mais de sete anos após a apresentação da primeira proposta e a rejeição e caducidade de 5 (cinco) outras iniciativas legislativas. Tal permitiu que o Parlamento passasse de apenas 5,7% de mulheres, na primeira eleição legislativa (1976), para 38,7% (2019) e 37% (2022).

Num tempo de regressão e de crescimento de visões retrógradas, sob a capa de defesa de que já não existem condições de partida distintas entre quem nasce homem e mulher, não devem ser as/os deputadas/os a dar o (péssimo) exemplo de negligenciar a importância que esta legislação progressista e transformadora teve para a construção de uma sociedade mais plural, mais inclusiva e, portanto, mais refletora da diversidade. É por isso, também, que juntamos a nossa voz àquelas e àqueles que lutam para que o Parlamento prossiga o seu caminho de correção dessas desigualdades. E que apelamos para que, amanhã, sejam aprovadas as iniciativas legislativa do Bloco de Esquerda e do PAN que fixam quotas de género na escolha das/dos magistradas/os do Tribunal Constitucional.

Não nos venham, portanto, outra vez, com a balela do mérito.

“Eu vim de longe, de muito longe
O que eu andei pr´aqui chegar
Eu vou p´ra longe
P´ra muito longe
Onde nos vamos encontrar
Com o que temos p´ra nos dar.”

Catarina Marcelino, ex-secretária de Estado da Igualdade do XXI Governo
Miguel Prata Roque, ex-secretário de Estado da Presidência do XXI Governo

Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico

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