A smartificação das áreas de baixa densidade

A aplicação inteligente de dispositivos tecnológicos e digitais pode transformar um círculo vicioso num círculo virtuoso de desenvolvimento se forem cumpridas algumas condições.

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As áreas de baixa densidade (ABD) estão inscritas no Programa Nacional de Coesão Territorial. Nele estão inseridos 165 concelhos completos e mais 20 concelhos com apenas algumas freguesias. Há regiões inteiras NUTS II e NUTS III (comunidades intermunicipais) completamente inseridas nessa catalogação. O problema é conhecido há muitas décadas. Vivemos num país pequeno, mas dual, o litoral e o grande interior, um país com duas grandes áreas metropolitanas e respetivos arcos adjacentes que fazem a transição para os concelhos mais remotos do interior. No final, um país sem coluna vertebral, ao mesmo tempo demasiado centralista e demasiado localista, um país melancólico que ao longo de décadas foi complacente com muita incompetência política, institucional e associativa.

Não há, porém, nenhum determinismo em que assim seja, nem uma ABD está impedida de criar riqueza, mesmo que administrada à distância. Ora, a smartificação dos territórios, ou seja, a aplicação inteligente de dispositivos tecnológicos e digitais, pode inverter a lógica das coisas e transformar um círculo vicioso num círculo virtuoso de desenvolvimento se forem cumpridas algumas condições. Vejamos, então, quais são essas condições, quase todas elas de carácter estrutural.

Em primeiro lugar, a escala, ou, se quisermos, a multiescalaridade: os concelhos de baixa densidade precisam de estar inscritos em redes de vilas ou cidades ou, então, ser membros de uma região-cidade, uma trajetória que as comunidades intermunicipais (CIM) irão fazer progressivamente; esta inserção em territórios-rede aumenta a dotação de recursos comuns, o musculo do ator-rede e a produção de bens conjuntos.

Em segundo lugar, as ABD precisam de estar dotadas de uma infraestrutura digital de elevada conetividade, 4G e 5G: esta cobertura de qualidade permitirá não só gerar maior interatividade interna e externa como produzir conteúdos mais diferenciados e, portanto, atrair mais facilmente capital humano de várias proveniências e, também ele, mais diferenciado. Ver, a propósito, a estratégia nacional para a conetividade e a prioridade às chamadas áreas brancas.

Em terceiro lugar, as ABD precisam de um centro de racionalidade e inteligência territorial: trata-se de subir na cadeia de valor da programação e planeamento regional de modo a suscitar uma produção de dados e conteúdos em quantidade e qualidade suficiente capaz de tornar interoperacional a economia das plataformas made in, mas, também, de levar a cabo um vasto programa de literacia tecnológica e digital; os institutos politécnicos e os núcleos empresariais podem ser a base destas operações, mas também no ensino secundário deveria ser criada, em cada CIM, uma escola de artes e tecnologias que aumente a literacia tecnológica e digital e alargue a base regional de recrutamento.

Em quarto lugar, as ABD precisam urgentemente de mais comunidades inteligentes, com mais inteligência emocional e vontade efetiva de colaboração: estas comunidades necessitam de estímulos fortes ao associativismo de proximidade e, também, a um associativismo de base mais virtual; os agrupamentos escolares, as associações empresariais, os clubes de produtores, são uma boa base de partida, mas outras iniciativas são possíveis, por exemplo, no quadro das ordens profissionais, dos sindicatos, das associações culturais e de programas de envelhecimento ativo, em múltiplas formas de teleassistência e rede ambulatória.

Em quinto lugar, as ABD, o colar de pérolas e a produção de projetos e conteúdos inovadores: na sociedade do conhecimento, os problemas de desenvolvimento são problemas de falta de conhecimento; o património e a paisagem, a ciência e a tecnologia, as artes e a cultura, formam um triângulo virtuoso, um colar de pérolas de onde germinam os projetos, os conteúdos e os sinais distintivos das ABD; os centros de investigação, os estudantes de mestrado e doutoramento, os investigadores estagiários e convidados, formam um grupo privilegiado que, bem enquadrado e orientado, pode apoiar a economia das plataformas multilocais na produção de dados e conteúdos.

Em sexto lugar, as ABD e a estimulação de fluxos de capital humano: precisamos de criar as condições para gerar um fluxo regular e crescente de população, talvez mais tarde, quem sabe, este fluxo se possa converter em stock de residentes; a economia residencial (3.ª idade), os trabalhadores migrantes, os turistas de ocasião, os nómadas digitais, as residências artísticas, científicas e culturais, os campos de férias e trabalho, os trabalhadores intermitentes das indústrias culturais e criativas mobilizados por um número crescente de eventos, são no seu conjunto e pelas economias externas e efeitos de complementaridade que desencadeiam uma forte estimulação para atrair e reter cada vez mais capital humano.

Em sétimo lugar, as ABD precisam urgentemente de criar um movimento sustentado de starting up: uma das comunidades inteligentes que urge criar na comunidade intermunicipal diz respeito ao associativismo dos jovens empresários que pode ser estimulado através da criação de um polo tecnológico regional de fins múltiplos, com espaços de coworking, residências artísticas e científicas, incubadoras de start up, oficinas de artes e ofícios, academias de formação, centro de estágios, etc.

Em oitavo lugar, as ABD são muito sensíveis à governação multiníveis e suas políticas de coesão territorial: pela sua especial vulnerabilidade, as ABD são beneficiárias líquidas de muitos estímulos ao investimento com base em programas diferenciados de origem europeia, nacional, regional, transfronteiriça; o problema maior reside na consistência territorial de todos estes estímulos que, no nosso caso, esbarram muitas vezes no centralismo dos programas e no labirinto dos procedimentos; o ator-rede tem a missão de conferir coerência a todas estas ajudas de política territorial.

Em nono lugar, as ABD são muito sensíveis à economia verde (IV e SE) e economia circular: pela sua especial vulnerabilidade às alterações climáticas e à transição energética e agroecológica, as ABD são beneficiárias diretas e podem ser muito criativas no que diz respeito à gestão da economia verde – a articulação entre infraestruturas verdes (IV) e serviços de ecossistema (SE) –, bem como em muitos projetos inovadores de economia circular e respetivas cadeias de valor.

Em décimo lugar, do branding territorial ao ator-rede e à curadoria territorial: as ABD, pela sua especial fragilidade, devem dar uma particular atenção à cultura do território e sua representação simbólica; neste sentido, três aspetos merecem ser sublinhados, a marca territorial e a sua imagem externa, a formação de uma estrutura de missão representativa designada de ator-rede, a curadoria do território como projeto de interligação de todos os principais ativos territoriais.

Nota Final

Estamos a viver uma década extraordinária, de grandes transições, plena de efeitos contraditórios, que podem ser particularmente agressivos em áreas de baixa densidade, como já acontece, por exemplo, com as secas severas e os fogos florestais. A smartificação das ABD, pela inteligência, conhecimento e criatividade que mobiliza, pode revelar-nos facetas extraordinárias destes territórios, dos seus ativos, sinais distintivos, cadeias de valor e micronarrativas, quem sabe, um surpreendente mundo novo para redescobrir e reinventar. Voltaremos ao assunto, há muito trabalho para fazer.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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