Destemidamente imune aos horrores que me assombram

Não tenho receio dos estereótipos do homem mau e forte, como o urso pardo de pata em riste, nem da mulher “mistofélica”, que desde a maçã do Éden nos sibila tentações em seu proveito.

Foto
Megafone P3: Destemidamente imune aos horrores que me assombram Unsplash
Ouça este artigo
00:00
02:03

Venha quem vier, não tenho medo. Não tenho medo de nada nem de ninguém. Não tenho receio dos estereótipos do homem mau e forte, como o urso pardo de pata em riste, nem da mulher "mistofélica", que desde a maçã do Éden nos sibila tentações em seu proveito.

Nem em pequena tive medo do que quer que fosse. Na penumbra do quarto de criança, as sombras dos casacos pendurados nunca me pareceram pessoas grotescas, e o ruído das patinhas dos ratos caminhando no forro do tecto nunca me soou medonho.

Não tive medo de ver a minha mãe a chorar pela ausência constante do meu pai, nem dos sopapos arrecadados injustamente pelo mesmo motivo. Não tive medo quando caí da bicicleta e quase perdi um joelho, nem passei a recear e a culpar as descidas íngremes pelos meus desastres.

Percebi cedo que os adultos temiam a solidão e os acidentes, mas eu nada temi quando os vi temerem antecipadamente o crescimento das minhas pernas. Não temi ser a pior aluna na história das aulas de História porque os meus olhos estiveram sempre postos nos dias seguintes e longe das tabelas de pautas.

Não receei a minha ignorância de adolescente, senti-me sempre inabalavelmente destemida. Até que encontrei por acaso o diário de criança e vi como a minha memória se tratava de uma ficção em catadupa.

A minha audácia ficcionada desmoronou-se quando descobri nas páginas do diário da infância, algures entre os onze e os doze anos, uma frase da minha mãe que talvez seja a linha principal da minha biografia: "És um monte de merda." Temi o pior.

Uma frase como uma pedra e um espelho. Se se juntassem seriam sete anos estilhaçados de pouca felicidade. Senti que ia deixar de respirar. Pedi ajuda ao milagre da farmacêutica. Um comprimido rosa pequenino debaixo da língua e tudo estaria bem.

Ser um monte de merda aos onze anos deixaria de ter importância em segundos. E de novo, a dormência e a audácia. Novamente forte e valente e ausente da realidade.

Venha quem vier, não tenho medo. Mesmo que por vezes seja necessário um milagre químico ou escrever que sou destemidamente imune aos horrores que me assombram.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários