Nos 75 anos do NHS: de Beveridge à Saúde de que precisamos

A divisão dos sistemas Beveridge versus Bismarck já não é útil para decisão política. Não é por um sistema ser tido como mais isto ou aquilo que é mais generoso – depende dos resultados.

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Manifestação por aumentos salariais no NHS, no último 1.º de Maio, em Londres Reuters/MAJA SMIEJKOWSKA
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O sistema de saúde britânico (National Health Service, ou NHS) faz hoje 75 anos. São 75 anos de uma história fantástica, nascida de generosidade social e imbuída do espírito de um desenvolvimento inclusivo e justo. Garantir cuidados de saúde adequados porque o nosso modelo social o exige e porque só com saúde o potencial da comunidade pode ser aproveitado (“health for all policies”).

Lord Beveridge está na História como o homem que revolucionou os modelos de proteção social. Em plena II Guerra Mundial e quando o seu desfecho estava longe de decidido, os ingleses tiveram a visão de encomendar ao economista William Beveridge um estudo sobre a proteção social. E o resultado não podia ser mais impactante: um relatório com a descrição das causas da miséria e a definição de políticas de proteção social “do berço até ao túmulo”. Deste trabalho apresentado em dezembro de 1942 tem particular relevo a definição de um NHS que se tornou verdadeiramente seminal e inspirador para os outros países. Incluindo Portugal.

Pelos manuais num sistema Beveridgano o acesso é universal, entendendo-se a assistência em saúde como direito de cidadania, com financiamento pelo Orçamento de Estado. Neste modelo a oferta de cuidados de saúde é predominantemente pública. Trata-se de um modelo totalmente diferente do sistema bismarkiano, baseado em seguros sociais de saúde.

Lord Beveridge fez um exercício que nós ainda temos dificuldade em aplicar em Portugal, passadas oito décadas. Beveridge apresentou uma súmula do seu sistema numa matriz de dupla entrada onde ficavam explícitas duas questões essenciais: por um lado havia a identificação das necessidades (despesas) mas também a previsão dos meios (receitas) para a execução das políticas; por outro lado, projetava valores para o ano de arranque mas também para 20 anos depois. É certo que a Base 23 da Lei de Bases da Saúde estabelece que o financiamento deve permitir que o SNS seja dotado dos recursos necessários ao cumprimento das suas funções e que o planeamento deve ser plurianual, mas alguns bons princípios custam a sair do papel.

Bem, a verdade é que em Inglaterra o NHS nasceu formalmente a 5 de julho de 1948. Faz hoje 75 anos e merece bem uma evocação e algumas reflexões.

O NHS permitiu a milhões de pessoas ter acesso a cuidados de saúde, tornou a saúde como uma prioridade política de primeira linha porque os cidadãos assumem a saúde como um direito e reclamam que seja montado um sistema que permita que possam ter os bens e serviços de saúde de que necessitam, sem que tal exija o seu pagamento direto.

Percebe-se bem que em países como a Inglaterra ou Portugal, conhecendo as pessoas o antes e o depois do NHS, se considere que a existência do sistema de saúde é um avanço societal, de que não estamos dispostos a abdicar.

Mas o NHS dá sinais de fragilidade para responder às expetativas dos cidadãos, i.e., apresenta riscos de sustentabilidade. As listas de espera são muito expressivas, as pessoas queixam-se do acesso aos médicos de família e aos hospitais, os profissionais de saúde estão exaustos e, ainda por cima, o sistema está claramente subfinanciado. Para quem não é sensível ao subfinanciamento num organismo público saliento as implicações desta situação em termos de escassa prevenção e promoção da saúde, falta de investimento, inadequada gestão de pessoas e um efeito de enfraquecimento do cluster da saúde (alargamento de prazos de pagamento, atraso na inovação, preços administrativos artificialmente baixos, etc). Recordo que estou a falar de Inglaterra, um país onde se diz que as greves dos profissionais de saúde dos últimos meses são inéditas e estão a deixar a população à “beira de um ataque de nervos”.

Estes sintomas já subsistem há anos, mas têm vindo a agravar-se. O envelhecimento da população, as novas tecnologias da saúde, o insuficiente investimento na formação de profissionais de saúde e uma visão de curto prazo (para além das repercussões do "Brexit") têm contribuído para que a oferta disponível seja cada vez mais curta face à procura crescente. Martin Wolf há vários anos que clama que a verdade inconveniente do inevitável aumento da despesa em saúde deve ser assumida pelos políticos e pelos cidadãos.

O NSH está sob grande pressão. Há uma boa discussão em curso e não há soluções milagrosas… nem fáceis. Por vezes o debate descamba para um simplismo dualista, mas não tem que ser assim. Note-se que a Organização Mundial de Saúde há anos alerta que “os rótulos podem enganar (…) Dois sistemas baseados genericamente em seguro de saúde podem funcionar de modo diferente quanto à agregação dos fundos e o seu uso para assegurar que as pessoas têm acesso a serviços; o mesmo se aplica a sistemas que são descritos como baseados em impostos. É por isto que a tradicional caracterização dos sistemas Beveridge versus Bismarck já não é útil para decisão política.” Não é por um sistema ser tido como mais isto ou mais aquilo que é mais generoso ou mais abrangente – depende do seu funcionamento, dos resultados em saúde que proporciona e da sua sustentabilidade a prazo.

Há que encontrar novas soluções mesmo sabendo que as reformas obrigam a dar um passo em frente. Por exemplo, o Partido Trabalhista em Inglaterra assume no seu programa que “o último governo labour reduziu tempos de espera recorrendo ao sector privado, contratando mais pessoal e promovendo boas práticas". E promete fazê-lo de novo. E o Partido Conservador assume como objetivo “aumentar o financiamento do NHS ao longo de três anos em 6,5 mil milhões de libras, com um adicional de 7,5 mil milhões de libras para cuidados sociais de adultos".

O NHS está em crise e está em reforma. Também em Portugal há preocupações que vão muito para além das manchetes. Para dar dois exemplos: o Conselho de Finanças Públicas reconhece que há 235 mil portugueses à espera de uma cirurgia e 583 mil pessoas a aguardar uma primeira consulta hospitalar e o INE no estudo que publicou ontem evidencia que em 2022 as famílias portuguesas, para além dos impostos que suportaram, gastaram 7,3 mil milhões de euros do seu bolso (out-of-pocket) para pagar a sua saúde. É um peso muito grande e não era seguramente este o modelo que Beveridge advogava.

Celebrar os avanços e lutar por manter os objetivos obriga a uma revisão objetiva dos factos, das metodologias e talvez das políticas. Aqueles que batem a mão no peito pela fidelidade ao modelo e que se esmifram pela exclusividade do público como dogma da equidade também são chamados à reflexão.

O NHS faz 75 anos. Está na hora da justa reforma.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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