Para que o estranho se torne mágico

Quem dera a esta senhora ter a minha força muscular, a minha mobilidade. E eu dava um rim, a minha casa, e o meu dinheiro para suportar estar sentado sem dores, como ela esteve à minha frente.

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Nós não existimos sem o outro. Não há amor ou amizade sem o outro. Não há alegrias sem o outro e, no entanto, temos tanta dificuldade em sair de nós próprios. Amadurecer os afectos e as emoções com o outro que nos é próximo é basilar na construção do nosso ser, mas há sempre espaço para a magia da descoberta do outro, totalmente desconhecido. O primeiro olhar, o primeiro contacto, o primeiro sorriso, as primeiras palavras têm um enorme poder, mas levantam um enorme desafio, que é a tentativa de compreensão e aceitação do total desconhecido. É uma missão exploratória da nossa ignorância.

Há dias fui a um grande hospital, para uma das toneladas de consultas que já tive a propósito da minha “querida” doença. Numa grande sala de espera para a consulta externa estão umas largas filas de cadeiras com muita gente lá sentada, a olhar para os monitores que estão em constante alternância dos números das senhas que chamam as pessoas para a consulta e respectivo gabinete. A minha “querida” dor crónica agrava-se muito rapidamente quando estou sentado ou de pé, então só me sobra estar deitado. Por isso é que a minha doença foi tão “querida” comigo ao tirar-me a capacidade de trabalhar, e de estar à mesa a almoçar ou jantar, a conversar, a socializar, ou de conseguir estar numa sala de espera.

Não tenho qualquer vontade em explorar a minha tristeza que se tornou uma âncora muito pesada na minha vida, mas também não tenho qualquer hesitação em assumir as minhas limitações, e sendo elas invisíveis empurram-me a ser vocal sobre o assunto, para ajudar as pessoas a compreender e aceitar as minhas necessidades especiais. E isto é crucial para a minha sobrevivência emocional.

Como não há nenhum grupo de três cadeiras seguidas livres para eu me poder deitar, como fiz noutras vezes, nesta sala, eu decido deitar-me no chão. Recebo uns olhares de incompreensão, mas aceito-os com tranquilidade porque sou um deficiente num formato estranho mesmo para a bitola de um grande hospital público e central. Estou entre a primeira fila e as máquinas de bebidas e café. Não é nada discreto o meu posicionamento, mas foi o único que eu pude escolher.

A primeira abordagem que tive foi surpreendente, ou talvez não. Uma rapariga na casa dos 30, ao aproximar-se da máquina para comprar uma água, olha para mim literalmente de cima para baixo, e dirige-se a mim com muito carinho e cuidado: “Está-se a sentir mal? Precisa de alguma coisa?” E eu retribuo o carinho das palavras dela, com um sorriso sem levantar a cabeça do chão, e digo apenas “está tudo bem, obrigado. Eu só preciso de estar deitado, para ter menos dor...” Ao que ela me contrapõe “quer que lhe vá buscar uma maca?”

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Rui Gaudêncio

A pergunta seguiu uma cadeia lógica de raciocínio, e sem dúvida uma enorme demonstração de compreensão e empatia, mas entrou na minha cabeça como um disparo de surpresa. Não me magoou ou causou tristeza, mas despertou em mim um mar de reflexões. Uma maca é para quem está mesmo muito doente e não se consegue mexer. Ora, eu entrei pelo meu próprio pé naquele edifício e subi as escadas em passo de corrida, e agora tenho esta oferta completamente desproporcional e quase distópica, que me confronta com a estranheza que o meu desafio clínico causa nas outras pessoas.

Para que esta conversa tivesse ainda mais condimentos, a rapariga ainda termina com “você é a pessoa que eu penso?” Eu deitado e ela de pé já é bizarro, esta formulação de palavras que ela escolheu para dizer que me reconheceu daria pano para mangas e também abacaxis. Enquanto me desperta um enorme sorriso na alma porque tudo isto é tão trágico quanto cómico, eu apenas lhe respondo com um sorriso, “Não, não sou.”

A minha resposta foi genuinamente humorística, mas percebi que talvez tenha sido um pouco bruto e demasiado cáustico, e por isso desfaço o que disse e assumo que talvez seja quem ela pensa, ela diz-me umas palavras simpáticas e eu agradeço de baixo para cima.

Depois veio o inimaginável: confronto de deficiências. Aproxima-se de mim uma senhora a chegar aos 70, um pouco obesa, e a deambular com lentidão e dificuldades evidentes com o apoio de muletas. Apercebo-me que para qualquer pessoa seria fácil chegar às ditas máquinas, mas, para esta senhora, eu ali sou um complicado obstáculo. Quando me apercebo disso encolho as pernas para que ela passe, peço logo desculpa pelo incómodo, mas ela rosna-me de volta: “Está aí deitado a estorvar! … a atrapalhar as pessoas que querem ir ao café!” – e di-lo sem qualquer abertura para poder estar errada ou até injusta nas suas palavras.

E eu digo-lhe calmamente: “Minha senhora, eu já lhe pedi desculpa e afastei as pernas, mas, repare bem, eu não estou no chão por prazer ou para me diverti; eu estou deitado, para minha grande tristeza, porque a minha doença assim me obriga… E da mesma forma que eu compreendo a sua situação e o seu desafio que a leva a ter que andar de muletas, eu estou-lhe a pedir que compreenda o meu desafio e as minhas limitações ao ter de estar deitado…” A senhora não mostrou qualquer sinal de empatia, nem de retrocesso nas suas tiradas iniciais e ficou pouco ou nada convencida com os meus argumentos.

Mundo estranho este que tem infinitas variantes em qualquer equação. Quem dera a esta senhora ter a minha força muscular, a minha mobilidade e agilidade, quem lhe dera, talvez, não parecer frágil e doente. E eu dava um rim, a minha casa, e o meu dinheiro, para suportar estar sentado sem dores, como ela esteve à minha frente.

Eu não julgo a senhora por não me ter compreendido e ter sido tão injusta nas palavras, porque eu, certamente, já o devo ter sido também, muitas vezes, sem me ter dado conta. Por isso, resta-me ficar com a aprendizagem: Nós não sabemos o que se passa no mundo do outro que cruza o nosso caminho. Não podemos julgar sem saber a dimensão da âncora física, psicológica ou emocional que o outro desconhecido arrasta para se manter à tona de água.

Quando o nosso caminho se cruza com as diferenças e o desconhecido, pode ser trágico ou desconcertantemente bonito, só depende da nossa compreensão e aceitação total, para que o estranho se torne mágico.

As crónicas de Gustavo Carona são patrocinadas pela Fundação Manuel da Mota a favor dos Médicos sem Fronteiras

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