Assassinaram Nahel, começaram uma guerra

A desigualdade social exuberante e o sucessivo cometimento de abusos por parte das polícias são o garante do barril de pólvora em que vivemos.

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“Bravo aos colegas que abriram fogo contra um jovem criminoso de 17 anos. Ao neutralizar o veículo, protegeram a sua vida e das outras pessoas na rua. Os únicos responsáveis da morte deste bandido são os pais, incapazes de educar os filhos.”

Esta mensagem foi partilhada no Twitter por um grupo de polícias franceses, relata Susana Salvador, no Diário de Notícias, num artigo intitulado “Violência em França após morte ‘indesculpável’ de jovem pela polícia”. Contém a explicação, ou uma amostra da explicação, para aquilo a que estamos a assistir em França.

Nahel foi assassinado. Isto contradiz a missão de qualquer força policial: proteger. Nahel morreu às mãos de quem tinha a responsabilidade e a obrigação de assegurar que aquilo não poderia acontecer. A atuação daquele agente foi criminosa e indesculpável. Se não concordarmos nesta parte, nunca mais nos entenderemos.

O tweet transcrito não reflete uma posição isolada. Houve várias tomadas de posição públicas, por parte de representantes de forças policiais, no mesmo sentido. Isto é preocupante, mas, ao mesmo tempo, é esclarecedor.

É preocupante porque demonstra que as forças policiais não têm a capacidade, ou a vontade, para fazer autocrítica e para analisar uma situação que se afigura bastante clara: um menor foi atingido a tiro, mortalmente, por ter cometido uma infração com pouca gravidade. Demonstra sobretudo que a extrema-direita já ali depositou os seus ovos e que a lógica de ver no cidadão um potencial inimigo está instalada. Esta lógica ganha particular relevância perante cidadãos imigrantes ou que integrem minorias.

Mas também é esclarecedor. Os jovens que incendeiam Paris não estão a travar uma guerra imaginária. Existe mesmo um conflito latente — e às vezes efetivo — entre as polícias e aqueles jovens. Reparem que, no rescaldo da morte do jovem Nahel, há grupos de polícias que se referem a ele como sendo um bandido. A raiva é tão irredutível que sobreviveu ao seu homicídio. Estamos a falar de uma guerra entre jovens racializados, provenientes de bairros pobres, e polícias armados que continuam a declarar-se numa posição de guerrilha.

São as forças policiais que têm a obrigação de manter a ordem e a segurança. Isto significa que algures na sua formação deverão aprender a manter o autocontrolo e a fazer o oposto daquilo que estão a fazer, ou seja, alimentar um conflito que põe em causa a segurança pública.

Ao disparar sobre Nahel, o agente de polícia disparou sobre todos os jovens que agora destilam revolta nas cidades francesas e isto deve ser compreendido. As declarações, que se seguiram, de vários representantes das polícias ainda atiçaram mais a intensidade dessa revolta. Estes operacionais não revelam bom senso e capacidade para levar a cabo a missão pública que lhes foi confiada.

Ninguém gosta de ver bibliotecas a arder, paragens de autocarro estilhaçadas e montras partidas. O primeiro impulso pode ser o de não compreender estes jovens, o de achar que não têm razão ou que, se a tinham, já a perderam. O instinto revolucionário que demonstram ter peca por excesso na atuação e por defeito no pensamento ideológico. É por isso que não conseguem fazer uma verdadeira revolução, apenas motins.

Mas a História ensina que as situações de injustiça nunca são perpétuas. Há um dia em que os injustiçados tentam fazer justiça e isso costuma acontecer de forma violenta. Aqueles jovens são movidos pela sede de justiça. Não confundir esse desejo, ou necessidade, com delinquência.

A desigualdade social exuberante e o sucessivo cometimento de abusos por parte das polícias são o garante do barril de pólvora em que vivemos. Não é só em França. Por cá, tivemos o Movimento Zero e os problemas de racismo e de violência policial persistem. A verdade é que um pouco por todo o lado há elementos nas forças policiais que são parte integrante do problema e que, em vez de a proteger, põem em risco a comunidade. Salvam-se os agentes que resistem à tentação do autoritarismo. Por cá temos bons exemplos. São verdadeiros heróis e não têm o reconhecimento que merecem. Não se pode criticar as forças policiais sem recordar que existem.

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