Sem Bolsonaro, acabam o show de horrores e a guerra contra artistas

Sector cultural brasileiro não deverá tornar-se mar de rosas, mas é difícil o cenário de caos gerado pelo ex-presidente retornar tão cedo.

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Jair Bolsonaro não pode ser eleito para cargos políticos até 2030 UESLEI MARCELINO/Reuters
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Com a ineligibilidade de Bolsonaro até 2030, o sector cultural brasileiro dificilmente será um mar de rosas. É e sempre foi possível fazer críticas pertinentes e honestas a órgãos e mecanismos como a Lei Rouanet, a Ancine [Agência Nacional de Cinema] e o Iphan [Instituto do Património Histórico e Artístico Nacional]. Mas, no governo Bolsonaro, o sucateamento da Cultura foi tão latente que é difícil imaginar um cenário semelhante num futuro próximo. Difícil, mas não impossível.

Esse recente movimento de animosidade contra o sector cultural não começou com Bolsonaro e nem é uma particularidade do Brasil. Anunciar um aumento de tecto para cachets de artistas na Lei Rouanet ainda encontra resistência.

Bolsonaro não tem um sucessor nítido. Ainda que o bolsonarismo volte ao Palácio do Planalto — com Michelle, Zema ou Ratinho Jr. —, ainda não se vislumbra uma figura que tenha o mesmo temperamento, o mesmo discurso antagónico aos artistas e o carisma suficiente para conseguir descer tanto o sarrafo sem comprometer a sua imagem.

A título de comparação, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, por exemplo, nome apoiado pelo ex-presidente, nomeou Marilia Marton para chefiar a Cultura na sua gestão. Marton, que se diz de direita moderada, fez carreira na administração pública e veio com um discurso de que "não se faz cultura sem financiamento público".

O cenário é muito diferente do que aconteceu no governo federal entre 2019 e 2022. Nesse período, a Cultura ocupou um lugar de destaque — o centro de um alvo de dardos. A importância do sector cultural residia no seu potencial de representar um antagonista alegórico com alto potencial de viralização nas redes sociais.

A gestão Bolsonaro, embora não tenha sido a primeira a fazer isso, rebaixou o Ministério da Cultura a uma secretaria, tornando-a um apêndice do então Ministério da Cidadania. Depois, a Cultura foi parar às entranhas do Ministério do Turismo – uma anomalia para a realidade brasileira, uma vez que só o Iphan, um dos vários órgãos vinculados ao Ministério da Cultura, tem mais servidores do que a pasta de Turismo inteira, segundo o Portal da Transparência.

Após uma série de gestões breves, incluindo a de Regina Duarte e de um actor que fez pastiche de nazi, quem fincou o pé na então chamada Secretaria Especial da Cultura foi Mário Frias, um actor que nunca teve grande expressão no cenário cultural brasileiro, mas por acaso era amigo de um político bolsonarista. O braço direito de Frias era André Porciuncula, policial baiano sem experiência em gestão cultural e admirador de Olavo de Carvalho.

A gestão de Frias e Porciuncula não foi das mais propositivas, com uma instrução normativa que tentou dificultar o acesso a financiamento de artistas em cidades que exigiam medidas restritivas em relação à covid-19. Houve ainda outra que criou uma categoria de financiamento exclusivo para "arte sacra", que misturava uma segmentação por linguagem com uma segmentação temática sem justificações técnicas.

Foi na gestão Frias também que um festival de jazz na Bahia foi barrado na Lei Rouanet por conta de um post no Facebook que defendia o antifascismo. Ele ainda diminuiu o cachet máximo para artistas por apresentação, que caiu para três mil reais.

A gestão Frias chegou a ser convocada para uma audiência da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, após denúncias de cerceamento de liberdade artística e cultural no Brasil.

Para estudiosos como João Cezar de Castro Rocha, da Universidade do estado do Rio de Janeiro, as chamadas guerras culturais são fundamentais para a sobrevivência de fenómenos políticos como o bolsonarismo. Calcadas em pautas de costumes — que não exigem grande bagagem intelectual para gerar debates — e em maniqueísmos, essas guerras mantêm a base apoiadora constantemente inflamada e engajada.

Esses debates encontram terreno fértil no imaginário de parcela da população brasileira quando aplicadas ao sector cultural. Uma exposição queer, uma peça com nudez, um filme sobre a ditadura militar são produções que, se jogadas fora de contexto nas redes sociais, são capazes de mobilizar muita gente e engajar repulsa ao sector cultural.

A alegoria do artista milionário encastelado no Leblon, nadando numa piscina de dinheiro da Lei Rouanet, acabou pegando entre as bases bolsonaristas e demais ramificações ultraconservadoras.

As instruções normativas altamente questionáveis podem ter cessado, mas não se muda um imaginário contra o setor cultural de um mandato para o outro. Anunciar um aumento de tecto para cachets de artistas na Lei Rouanet ainda encontra resistência e financiar obras sobre sexualidade ainda gera polémica.

Exclusivo PÚBLICO/Folha de S. Paulo

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