O murmúrio do vento que passa

Prevalece na sociedade um sentimento de inoperância pela ausência das reformas necessárias e pela decadência dos grandes serviços públicos.

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Who controls the Past controls the Future
Who controls the Present controls the Past
George Orwell (1903-1050)

A Trova do Vento que Passa de Manuel Alegre marcou os nossos anos 60. Denúncia da ditadura, da opressão, da tristeza e apelo à sementeira de canções ao vento que passava para manter a chama da Liberdade. O exercício da memória colectiva e histórica não é propriamente atributo nacional, mas é uma necessidade. De facto, poder-se-á compreender melhor o Presente se recordarmos os factos e as realidades que marcaram o Passado.

Quarenta e oito anos depois, para quê recordar esse Verão quente de 75? Foi acidente de percurso, durante uns meses, talvez um produto da teoria do caos aplicada à sociologia, e que noutras áreas nos ajuda a compreender os saltos quânticos inesperados na evolução da Vida na Terra. Mas a semente ideológica que sustentou essa aventura continuou presente e activa na acção política em décadas subsequentes, influenciando decisivamente a formação política e ideológica de sector muito relevante dos protagonistas do tempo actual e, quem saberá, se do Futuro. Constituiu um ruído de fundo, qual murmúrio do vento na folhagem, assente numa história depurada das loucuras e exageros do seu tempo, para melhor perpetuar a mitologia, no discurso e na acção.

Ruído de fundo que me fez ressoar o aviso de Marx sobre a repetição da História quando ela ocorre noutro tempo, noutro modo e noutra época: da tragédia que pode ser o original passará inexoravelmente a comédia. A primavera/verão de 1975 podia ter sido uma tragédia. Não passou de uma loucura terminada em 25 de novembro de 75 pelo combate lúcido, inteligente e patriótico, esse sim verdadeiramente democrático dos outros protagonistas que merecem ser perpetuados na memória histórica e cuja data vai sendo insensivelmente esquecida até ao seu esvaimento na memória colectiva. Porque é um espinho na outra narrativa que esse vento murmura. Daí a referência inicial a George Orwell.

Analisar será tarefa dos historiadores. Ao cidadão atento e comprometido compete o exercício da memória e as suas lições. Foi a derrota da primavera e verão de 75 que possibilitou a arquitectura do poder democrático e a manutenção do alinhamento político internacional com a Aliança Atlântica e a Europa, viabilizando a adesão posterior à CEE. E assinalou a rota: democracia representativa, tolerante, moderada e capacidade de escolha do seu pendor social no contexto de Liberdade política. E foi o Estado democrático que venceu as erupções de violência revolucionária preservando a tranquilidade cívica.

A semente sobreviveu à queda fragorosa do muro de Berlim, à implosão soviética perante o júbilo e alívio das populações, foi bandeira de esperança alimentada pela memória da revolução do maio de 68 de inspiração maoista, irrompeu no voluntarismo pré-totalitário que marcou o período socrático na tentativa de controle das alavancas do poder cujo equilíbrio é fundamental à democracia representativa e parece perpetuar-se em descendentes desse tempo. Alimentou-se uma ilusão: de que só o que é publico pode servir o interesse colectivo. Ilusão romântica e sedutora? Ou erro de dimensão histórica?

Foi também esse ruído de fundo que verdadeiramente assegurou o cimento teórico na política dos últimos anos, na improvável compatibilização da herança intelectual democrática, socialista e moderada que prevaleceu desde 75, com o militantismo de uma esquerda aprisionada na sua narrativa pseudo-libertadora. Cresceu alimentado pelas dificuldades da bancarrota financeira que o voluntarismo do então governo socialista ampliou e que obrigou a intervenção externa. E procurou acelerar pretenso modernismo social, disfarçado de sofisticação intelectual, sacrificando valores, ética e regras e excluindo propostas e orientações moderadas. E parece ter aprisionado, intelectualmente e na acção, a maioria absoluta, honestamente ganha perante a inoperância da oposição.

Quais os resultados? Melhoria das contas públicas potenciada pela inflação, incremento da colecta fiscal e pelas verbas dos planos europeus, é o ás de trunfo. As contas certas que antes foram execradas, agora convertidas em objectivo nacional e imperativo para o crescimento económico e a confiança dos financiadores. Mas prevalece na sociedade sentimento de inoperância pela ausência das reformas necessárias, pela decadência dos grandes serviços públicos como a Saúde, a Educação e a própria Justiça. Como se o País estivesse dividido entre os que dependem dos serviços públicos e o outro que prospera e se desembrulha, na Saúde e Educação e na actividade económica.

Realidades paralelas não comunicantes, que parecem continuar a divergir e não a convergir. Um fosso social que tende a agravar-se. Mais incompetência e erosão ética em procedimentos políticos, administrativos, na lei e nas narrativas sucessivas com que se pretende esconder a realidade e arrogância paroquial, isolacionista como na ferrovia de bitola ibérica que nos isolará do resto da Europa. Se continuar, consubstanciará no século XXI a albanização que alguns defendiam em 1975. O que às vezes parece, caro leitor, é que esse ruído de fundo do Verão de 75 foi recuperado e talvez ampliado. Dele, ficará travo amargo de comédia mal encenada.

Analisemos três aspectos da realidade. Servem como o palito no bolo, como diria o meu Mestre. Na Educação, foi destaque na imprensa que, apesar do incremento enorme de doutorados pelas nossas universidades, apenas 6% chegam ao tecido empresarial – 40% na União Europeia. Um esforço tremendo das instituições académicas, das famílias e dos próprios que esbarra, perdido no labirinto do emprego, fora do sistema produtivo onde seriam úteis, ou consumido em tarefas muito aquém das suas competências. Um desperdício. Por isso, muitos emigram para outras economias, mais dinâmicas, inovadoras e com melhores ordenados e perspectivas de futuro. O que falhou? E o que pode ser feito para menorizar a dimensão deste problema?

Na Saúde, a disfunção do SNS agravou-se pela irrupção desse ruído de fundo na política reformista iniciada. Sem nenhuma razão objectiva, mudaram-se paradigmas de organização que funcionavam a contento dos cidadãos e sem atropelos de deveres, agravou-se o desempenho dos serviços de Saúde. A pandemia teve certamente impacto – as suas consequências não foram, nem creio que venham a ser analisadas com isenção e profundidade – mas os problemas pré-existiam e agravaram-se.

Saída de profissionais de Saúde quer para o sector privado, quer para a emigração, procura de realização pessoal e profissional e compensação financeira decente, sem a necessidade de uma sobrecarga em horas extraordinárias, como é bem ilustrado no Relatório sobre Recursos Humanos em Saúde publicado pela NOVA. Atrasaram-se – irremediavelmente? –​ políticas que hoje na Europa tendem a aproximar os modelos organizativos da Saúde, para benefício, escolha informada dos cidadãos e potenciação de recursos. Persistência das dificuldades financeiras e gestão ineficiente, não obstante a dotação que passou de nove mil milhões para cerca de 15 mil milhões de euros anuais, como se refere no Relatório do Conselho de Finanças Públicas recentemente publicado.

E noutra dimensão bem reveladora da indiferença social e desrespeito pelos valores, morais e éticos, é a ausência de política de imigração séria e digna, que compatibilize necessidades laborais com legítimas expectativas de quem procura melhor vida, que permita assegurar condições de vida dignas, sem demagogia e sem a exploração que, dos campos alentejanos à Mouraria e ao estuário do Tejo, são um espinho na consciência cívica e moral duma sociedade.

Kissinger, no último capítulo do livro Liderança, faz uma análise brilhante sobre a quebra desta dimensão ética e dos valores e o seu impacto na redução da credibilidade da Política. E aponta falhas no sistema educativo, das escolas secundárias às universidades e às instituições políticas, orientada para a formação de activistas e técnicos e que se alheou da formação de cidadãos, e entre eles, de estadistas potenciais. E cita Yuval Levin em Making Meritocrats Moral, para quem o problema da falência das lideranças dependerá da falta de padrões éticos e de aceitação das limitações no exercício do Poder que era marca de uma aristocracia do Poder cuja norma era noblesse oblige e que, no tempo actual, se traduzirá pelo dever público de fazer bem e prestar contas. E acentuou, também, a relevância do carácter, dos valores sociais e éticos e das regras de comportamento que são atributo indispensável e que com a tolerância e moderação serão o novo pergaminho da liderança inteligente.

Mensagem que não deve ser ignorada no tempo actual e é imperativo de cidadania. Que propostas de solução nos são apresentadas para essa discussão informada no espaço público? A diversidade de ideias e propostas é o alimento da democracia, promove exigência no debate e no comentário político, atenua o impacto do soundbite mediático, falsamente mobilizador, é alimento para a cidadania empenhada e comprometida com o Bem Público e regula, também, o comportamento das lideranças.

Um lamento final. A dignidade debilitada e a desvalorização da Palavra – recordo Adriano Moreira: o poder da palavra sobrepõe-se à palavra do Poder –,​ a menorização da autorictas, a indiferença perante os valores perenes e que contam.

São também estes outros murmúrios que não podemos ignorar. São um apelo para que não se esconda a realidade, se alimente a exigência democrática e se cumpra o dever e a responsabilidade pública de Fazer Bem.

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