Pôr fim à fragmentação de cuidados

Num mundo cada vez mais impulsionado por dados e pela inteligência artificial, não são as respostas avulsas e de desconto que irão permitir o acesso universal a cuidados de saúde.

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As famílias têm necessidades de saúde de enorme variedade e complexidade.

Pouco dados às gavetas criadas pelos serviços de saúde, os cidadãos enfrentam respostas fragmentadas para terem acesso aos cuidados que necessitam. É nas situações de maior fragilidade que as dificuldades se acentuam, reduzindo o acesso e a qualidade de cuidados prestados daqueles que mais necessitam. Quantos de nós e dos nossos já se sentiram perdidos e frustrados com as respostas existentes?

Os resultados da fragmentação da oferta de cuidados são sobejamente conhecidos: crescente insatisfação dos cidadãos e dos profissionais do setor, e desperdício de meios. Em dez anos (2013 e 2023), a despesa do SNS aumentou 64%. Para colmatar a insatisfação, os cidadãos procuram alívio onde podem, sendo sensíveis ao engodo de serviços de conveniência ainda mais fragmentados e descoordenados, baseados na faturação ao quilo de cuidados.

Veja-se a proliferação de cartões e planos de saúde (alguns até promovidos por autarquias), ou consultas médicas e cirurgias com desconto na esquina mais próxima. Ao preço certo, pode ter a sua consulta de manhã e ser operado da parte da tarde. Igualmente, fruto da falta de efectividade, os profissionais perdem a sua motivação intrínseca — prestar cuidados de qualidade — e abraçam a medicina ao peso, abandonando o serviço público de saúde.

O Governo anunciou que, até ao final do ano, os cuidados de saúde primários e os serviços hospitalares estarão integrados numa mesma organização. Qualquer mudança tão estrutural como a pretendida pelo Governo enfrenta vários desafios, não sendo óbvio que todas as unidades locais de saúde (ULS) já existentes tenham apresentado melhores resultados do que o modelo tradicional. Com efeito, para integrar cuidados é necessário mais do que criar entidades. Contudo, mais do que outro modelo, as ULS permitem transformar as respostas através da sua integração.

Primeiramente, uma organização unificada pode melhorar a colaboração entre os cuidados primários e os hospitais para oferecer uma abordagem mais centrada no doente, melhorando a experiência geral na utilização dos serviços. Tal abordagem também melhora a continuidade e coordenação dos cuidados, oferecendo aos doentes transições suaves entre os vários prestadores, resultando numa maior satisfação dos doentes e melhores resultados de saúde, especialmente para aqueles com condições crónicas e necessidades complexas. Facilita partilha e o acesso à informação, reduzindo a duplicação de testes e erros, mas também o alinhamento dos profissionais de saúde em função da saúde de cada cidadão.

Com uma visão mais abrangente do percurso de saúde de cada pessoa, estas organizações estão mais bem equipadas para gerir e melhorar a saúde da sua população através do investimento na promoção da saúde e prevenção da doença. Este modelo pode ainda proporcionar mais oportunidades para inovação na prestação de serviços, incluindo e-saúde, serviços de cuidados domiciliários e outros modelos de saúde inovadores.

Finalmente, estas organizações têm melhores capacidades para servir as pessoas em diferentes cenários, dos meios urbanos aos rurais, proporcionando assim um melhor acesso aos cuidados e reduzindo potencialmente as disparidades de saúde através da articulação com as entidades locais e comunitárias. Ao mesmo tempo, as organizações integradas podem aproveitar economias de escala para reduzir custos, incluindo um maior poder de negociação com fornecedores e processos administrativos mais eficientes.

Num mundo cada vez mais impulsionado por dados e pela inteligência artificial, não são as respostas avulsas e de desconto que irão permitir o acesso universal a cuidados de saúde e a melhoria da saúde dos portugueses. O desenvolvimento do SNS não foi conseguido através de interesses de feição ou sem velhos do Restelo. Imagino que esta necessária transformação enfrente muitas tormentas. Contudo, tudo é mais fácil quando sabemos o caminho e temos quem nos guie.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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