Putin, o amigo da Europa

Após a crise das dívidas soberanas, a ascensão dos populismos, a crise das migrações, o Brexit ou a pandemia, Putin percebeu que a união dos europeus estava na mó de baixo.

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A ideia de que Vladimir Putin é um inimigo do Ocidente é comummente partilhada. Estadistas europeus, como Angela Merkel, Emmanuel Macron ou Silvio Berlusconi, frequentemente discordaram dessa perspetiva, tendo advogado relações amigáveis e não humilháveis com Moscovo. Da sua parte, Putin tem procurado estar à altura da camaradagem ocidental, contratando um grupo de mercenários de pouca confiança para fazer a guerra por si, ajudando a tornar a Ucrânia num dos exércitos mais bem equipados da Europa e colocando um Cavalo de Tróia na área de influência geopolítica russa, o que estendeu os interesses ocidentais para quase 2 000 km de fronteira terrestre com a Rússia.

Identidade ucraniana: Putin não se tem poupado a esforços para promover o sentimento de nação ucraniana. Ano e meio de guerra ajudou à compreensão profunda e íntima sobre um inimigo comum que ameaça existencialmente um povo específico. Simbolicamente, a cisão com o Russkiy Mir tem feito muitos ucranianos que habitam em regiões predominantemente russófonas afastar-se da língua russa.

O afastamento centra-se, porém, mais em questões político-valorativas do que nas diferenças linguísticas ou étnicas. Os ucranianos desenvolveram a perceção de que fazem parte de uma outra civilização que estima valores democráticos, digamos, diferentes. Isso é evidente no senso de ação coletiva para proteger os valores e direitos que lhes são caros. Algumas sondagens recentes mostram como o apoio dos ucranianos à democracia teve um incremento significativo nos últimos anos (+35%). A batalha pela nação ucraniana está a ser ganha, resta saber se Putin também vai permitir que o país se mantenha soberano e independente.

Contra a desunião europeia: os incansáveis esforços de Putin relativamente à UE também não têm passado despercebidos. Após a crise das dívidas soberanas, a ascensão dos populismos, a crise das migrações, o Brexit ou a pandemia, Putin percebeu que a união dos europeus estava na mó de baixo. Desde então, com a “operação especial” de “desmilitarização e desnazificação” da Ucrânia, Putin conseguiu o impensável: i) reforçou o sentimento de luta comum dos europeus, com ¾ a continuar a apoiar o esforço de guerra da UE; ii) mudou a forma como a União olha, historicamente, para a sua defesa; iii) conseguiu que, em menos de ano e meio, 27 Estados-membros aprovassem por unanimidade 11 pacotes de sanções à Rússia; iv) deu palco global à causa ucraniana e encetou conversações sobre a adesão da Ucrânia à UE (em conjunto com a Moldova) e à NATO (onde já está a Finlândia e poderá estar a Suécia). O que Bruxelas separou, Putin aproximou.

Autossabotagem soviética: Após o final da Guerra Fria, os europeus estenderam os seus tentáculos da democracia, Estado de direito, dignidade humana, igualdade ou liberdade para os países da Europa Central e Oriental e eles aceitaram-nos, voluntariamente. A sua máquina tentacular estendeu-se ainda à política de vizinhança, desde os finais do século 20, e às sanções a Moscovo, desde 2014, mas nem isso abalou o mundo russo.

Foi preciso a intervenção de Putin para os europeus conseguirem enfraquecer a Rússia. Internamente, os problemas acumulam-se — dos apelos à revolução, em maio passado, à tentativa de rebelião armada há dias, o chefe do Grupo Wagner tem exposto a fragilidade total do Kremlin. Externamente, Moscovo acentuou a sua dependência de Pequim, tornando-se num armazém de petróleo, carvão e gás natural para os chineses; por conta das sanções, foi arredada dos setores tecnologicamente mais avançados da economia mundial; e foi afastada da última Cimeira China-Ásia Central, demonstrando a perda de influência no seu próprio quintal, nomeadamente na Arménia, Moldávia, Cazaquistão e Azerbaijão (já para não falar na Ucrânia, Geórgia ou Bálticos).

A amizade de Putin com a Europa parece, de facto, não ter limites. Vejamos qual o seu impacto nas próximas eleições presidenciais russas, em março de 2024. Isto, claro, se Putin lá chegar.

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