Homens do seu tempo ou o construcionismo social dos reacionários

Quando a ideia de realidade socialmente construída serve de justificação para uma prática social. Uma apropriação do construcionismo oposta ao uso que lhe é dado pela esquerda e pela teoria crítica.

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O construcionismo social refere-se a uma família de posições em filosofia e nas ciências sociais que defende, de modo geral, que o significado que atribuímos a certos aspetos do mundo é produto dos nossos contextos socioculturais. Adotada tanto em contextos académicos como políticos, a ideia de construção social é frequentemente mobilizada pela esquerda e pela teoria crítica para desafiar a naturalização de certos conceitos, práticas ou instituições no discurso dominante, particularmente quando estes são vistos como injustos ou opressivos.

A tais denúncias, os setores conservadores e/ou de direita reagem frequentemente com indignação e acusações de relativismo. Em causa está a ideia de que a identificação de algo como uma construção social implica a negação da sua realidade. Seria tão fútil quanto desonesto pretender que tais projetos não enfrentam dificuldades filosóficas, mas é justo afirmar que as posições construcionistas não implicam (sempre) um argumento ontológico acerca da realidade. O argumento central do construcionismo social é, aliás, um argumento epistemológico acerca das nossas formas de acesso à realidade, algo que é independente de afirmações ontológicas acerca do que a realidade é.

O discurso político conservador e/ou de direita, pelo contrário, avança frequentemente argumentos construcionistas com implicações ontológicas claras. Recorde-se, a este respeito, o muito aplaudido discurso de Marcelo Rebelo de Sousa a 25 de Abril de 2021, no qual o Presidente da República Portuguesa apelava a que, entre esforços de reconhecer o passado colonial e esclavagista português, não se exija “aos que viveram esse passado que pudessem antecipar valores (…) para nós agora tidos por evidentes, intemporais e universais”. Ao pedir-nos que não julguemos “o passado com os olhos de hoje”, Marcelo adotava uma postura construcionista “forte” segundo a qual tudo o que existe de objetivo no mundo é estritamente equivalente àquilo que sabemos (quem é que sabe?) acerca do mundo.

O apelo de Marcelo reproduz uma versão sofisticada de argumentos familiares, articulados de forma falaciosa e atirados com demasiada facilidade para a mesa de discussão sempre que o assunto é o colonialismo: os tempos eram outros, ergo, não vale a pena discuti-los no presente. No contexto da receção do construcionismo social na esfera pública, o que salta à vista é, pois, o conflito gritante entre a indignação conservadora perante reivindicações emancipatórias que utilizam o modelo construcionista para rejeitar a naturalização de certas categorias sociais opressivas, por um lado, e a mobilização de uma versão extrema desse mesmo modelo para fins reacionários, por outro.

Os propósitos reacionários desta jogada tornam-se evidentes quando reconhecemos que, neste contexto, a ideia de uma realidade socialmente construída é invocada dissimuladamente como justificação moral para determinada prática social. Tal apropriação do modelo construcionista é diametralmente oposta ao uso que lhe é dado pela esquerda e pela teoria crítica, que o mobilizam enquanto modelo explicativo da realidade social e colocam ao serviço de movimentos liberatórios.

Ao contrário do que acontece com as reivindicações emancipatórias da esquerda – “a divisão sexual do trabalho é uma construção patriarcal”, “a raça é uma invenção colonial” –, quando os conservadores nos dizem que “era assim que se fazia” não procuram colocar em evidência o modo como “o que se fazia” era naturalizado pelos grupos dominantes em detrimento das perspetivas dos marginalizados. O que aí está implícito é uma visão totalizante das conceções morais de uma época, que não deixa espaço a discursos de oposição e avaliações alternativas de práticas dominantes.

Sabemos, porém, que as coisas não se passam assim. Como Manuel Loff escreveu a propósito do discurso do Presidente da República em 2021, a apropriação construcionista de Marcelo “persiste num dos mais velhos erros da leitura reacionária do passado: o de inventar um tempo em que os valores dominantes seriam tão consensuais que nenhuns outros teriam sido enunciados”. Trata-se de uma postura epistémica que negligencia ativamente as narrativas dos grupos marginalizados – neste caso, o facto de que a dominação encontra sempre resistência, de que os valores dos grupos dominantes nunca foram simplesmente aceites passivamente pelos grupos oprimidos. Como afirmava Amílcar Cabral: “Desde o dia em que passou pela cabeça dos tugas dominar-nos, explorar-nos, a nossa resistência começou”.

A manipulação reacionária do modelo do construcionismo social toma, pois, a forma de um relativismo moral aberrante cujo propósito é a perpetuação do silêncio sobre práticas e instituições que continuam, no presente, a produzir privilégios e hierarquias. Enquanto tentativa de justificação moral, o construcionismo dos reacionários silencia vozes insurgentes na medida em que procura impedir uma avaliação crítica dos valores dominantes de determinado período histórico. Arma-se com o arquivo e a memória histórica institucionais – as suas omissões e deturpações ideológicas –, que contam uma história de submissão passiva através de um processo subtil de desumanização dos oprimidos ou de identificação do humano com o sujeito dominante.

Ainda que a apropriação conservadora e/ou de direita do construcionismo social seja por demais evidente, talvez baste referir-me à manipulação reacionária desse modelo, independentemente da sua associação explícita a determinado projeto político. O motivo pelo qual faço esta qualificação é infeliz na medida em que me é sugerida pelo mais recente caso de apropriação do modelo construcionista para fins reacionários. Tenho em mente o caso de Boaventura de Sousa Santos, as acusações de assédio (e tentativas de abuso) sexual e moral de que foi alvo nos últimos meses e as suas recentes declarações acerca do assunto. Como é sabido, Boaventura de Sousa Santos não é nem de direita nem explicitamente conservador, mas a sua reação às gravíssimas acusações que lhe foram dirigidas exibem a mesma retórica reacionária que observamos nesse quadrante político.

Escreve Boaventura: “Nascido em 1940, sou de uma geração em que comportamentos inapropriados (…) eram aceites pela sociedade. (…) Reconheço que em alguns momentos posso ter sido protagonista de alguns desses comportamentos. Nessa medida, lamento que algumas pessoas possam ter sofrido ou sentido desconforto.” Disfarçada de pedido de desculpas, tal declaração expressa uma desresponsabilização na medida em que ensaia uma tentativa de justificação moral, não obstante a explícita declaração de intenções em contrário: “Não se trata de justificar comportamentos passados, apenas de verificar algo que pode acontecer e redundar em ações pouco construtivas”. Mas, se não é uma justificação moral que Boaventura de Sousa Santos procura com estas declarações, o que procura? Uma justificação causal?

É difícil perceber a quem é que esta declaração se dirige. Que homens como de Sousa Santos são produto do seu tempo, i.e., que as suas atitudes são caraterísticas de uma organização social eminentemente patriarcal, não é surpresa para ninguém, exceto talvez para o próprio. Tal constatação limita-se a enquadrar os seus atos individuais numa estrutura de dominação que os explicam de um ponto de vista sociológico. Que o “professor estrela” recorra a um modelo causal para comentar os seus próprios atos só pode ser entendido de duas formas: ou como uma tentativa desesperada de redenção através da sua própria despersonalização, reduzindo razões a causas e barricando-se num determinismo cultural; ou como uma estratégia de manipulação que distorce o modelo construcionista para que este pareça desresponsabilizá-lo moralmente.

Escusado será dizer que alguém como Boaventura de Sousa Santos, estudioso dos mecanismos de poder operantes a nível global, alguém que se diz aliado da luta feminista e de outros movimentos emancipatórios, sabe perfeitamente o que está a fazer e os recursos que decide manipular. Aqui se encontra o aspeto mais perverso da sua recente intervenção: ao desresponsabilizar-se das suas ações, escudando-se atrás de práticas e instituições sociais dominantes, Boaventura legitima uma desresponsabilização generalizada. Afinal, todos nós somos homens do nosso tempo.

Felizmente, o nosso tempo carateriza-se igualmente por um crescente fortalecimento de discursos de oposição – fruto de longas tradições de luta política e intelectual – que possibilitam a articulação de narrativas alternativas acerca da realidade dos sujeitos não-dominantes em determinado momento histórico, onde os recursos dominantes falham. Fazem-no através de um conjunto de práticas de re-imaginação tais como a genealogia e a fabulação críticas, mas também revisões do cânone historiográfico e filosófico à luz de perspetivas aí tradicionalmente silenciadas. Saibamos ouvi-las e honrá-las – em boa-fé, respeito e honestidade intelectual.

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