As vidas presentes de Cabral na Guiné e em Cabo Verde

Esta série iniciou-se com a análise do impacto de Amílcar Cabral e da sua memória em Portugal. Concluímos hoje com uma reflexão acerca das vidas póstumas de Cabral em Cabo Verde e na Guiné-Bissau.

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Sede da associação cabo-verdiana Pilorinhu, no Bairro da Achada Grande Frente, onde, em 2019, foi inaugurado um mural de homenagem a Amílcar Cabral, feito por Vhils Cortesia Estúdio Vhils/José Pando Lucas
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A 2 de setembro de 1976, os restos mortais de Amílcar Cabral foram transladados de Conacri para Bissau. Essas imagens, que o documentário O Regresso de Cabral haveria de conservar, mostram os rostos chorosos de quem assistia à retirada do caixão do avião e à sua chegada a solo guineense. O corpo de Amílcar Cabral seria depois levado para o Forte de Amura, quartel-general das Forças Armadas guineenses, onde ainda hoje repousa, num mausoléu construído para o efeito.

Cabral, fundador da nacionalidade

Era a forma de homenagear e dignificar o principal rosto da luta de libertação conduzida pelo PAIGC e a quem, tanto na Guiné como em Cabo Verde, havia sido atribuído o título de fundador da nacionalidade, após as independências. Este gesto, acompanhado pela consagração do dia 12 de setembro — aniversário do nascimento de Cabral — como Dia da Nacionalidade, atestava a sua dupla pertença: cabo-verdiano, pela origem dos pais e pela formação nos anos de adolescência; guineense, por nascimento e pela opção de aí ancorar a luta armada.

Por uma série de razões, entre as quais ter preconizado uma luta marcada pelo singular projeto de conquistar a libertação conjunta da Guiné e Cabo Verde, ele ocupa o lugar de figura maior das duas nações: foi o líder histórico do PAIGC e da guerra contra o colonialismo português, sendo internacionalmente reconhecido pelas suas capacidades políticas e diplomáticas; morreu assassinado antes das independências, o que lhe conferia uma aura de mártir; era louvado como um estratego sagaz e um intelectual fecundo, que agregava no conceito de luta um conjunto de ensinamentos mais amplos de natureza cultural, social e política.

É neste contexto que Amílcar Cabral se tornou presença constante nos primeiros anos de existência dos dois países independentes: na Guiné, episódios da sua vida, linhas do seu pensamento e excertos da sua obra eram regularmente citados no jornal estatal Nô Pintcha ou evocados pelas organizações do partido, assim como em diferentes feriados nacionais. Na literatura, na música e no cinema — desde as canções de José Carlos Schwarz e o Cobiana Djazz aos Super Mama Djombo, do cinema de Flora Gomes à poesia de Tony Tcheka — é à figura e memória de Cabral que permanentemente se recorre.

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Número especial do jornal Nô Pintcha de 12 de Setembro de 1976, assinalando o aniversário de Amílcar Cabral

O mesmo sucede em Cabo Verde: no arquipélago, ele é recordado na música nacional (de que as emblemáticas canções Labanta braço e Cabral ca mori são apenas dois exemplos). O seu retrato aparece impresso no escudo cabo-verdiano (como, de resto, sucedia também no peso guineense) e o periódico Voz di Povo publicava excertos dos seus escritos, discursos e entrevistas. Cabral era figura maior nas celebrações oficiais do Estado, especialmente nos feriados de 20 de janeiro, data do seu assassinato e Dia dos Heróis Nacionais, e no 5 de julho, aniversário da independência nacional.

Usos de Cabral depois do fim da unidade

Em novembro de 1980, um golpe de Estado liderado por João Bernardo “Nino” Vieira na Guiné poria fim ao projeto de unidade binacional entre os dois países. Entre as razões evocadas para o golpe militar estaria a recuperação dos valores e dos objetivos traçados na luta por Cabral, que se considerava terem sido traídos. A sua figura é então mobilizada como gesto de relegitimação política do recém-formado Conselho de Revolução. Noutra interpretação, muitos consideram que terá ocorrido aí uma segunda morte de Amílcar.

Na sequência do golpe, é criado em Cabo Verde o PAICV e, nos anos seguintes, produzem-se alterações políticas, sociais e mnemónicas no país. Elas serão impulsionadas, em parte, por um sentimento de fragilidade herdado com o fim do PAIGC no arquipélago, onde, em determinadas ilhas, sempre tivera dificuldades em conseguir enraizar-se inteiramente, em função de uma relação complexa de setores sociais relevantes no país com a unidade com a Guiné e com o legado da “africanidade”.

Entretanto, no início da década de 1990, ocorrem eleições multipartidárias e com elas dá-se a derrota nas urnas do PAICV. Na sequência da transição política, opera-se no arquipélago o que já designámos noutros trabalhos como “transição mnemónica”. Substitui-se então a paisagem memorial dominante por uma nova, rasurando a centralidade da herança anticolonial da luta armada, expressa, entre outros tópicos, na aproximação a África e na valorização dos protagonistas da “luta”, e procedendo ativamente a uma recuperação de acontecimentos e figuras anteriores à independência. Ocorre então um processo de “desafricanização”, como lhe chama Márcia Rego, e de descabralização dos símbolos nacionais: a sua efígie desaparece das notas do escudo cabo-verdiano, a data do seu nascimento deixa de ser celebrada como feriado nacional e o hino com letra da sua autoria é substituído.

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Amílcar Cabral era cabo-verdiano pela origem dos pais e pela formação nos anos de adolescência; guineense, por nascimento e pela opção de aí ancorar a luta armada Cortesia Estúdio Vhils/José Pando Lucas

Apesar disso, na segunda metade da década de 1990 são construídas estátuas a Cabral na ilha de Santiago e na ilha do Sal e, em 5 de julho de 2000, quando se comemoravam 15 anos da independência, é inaugurado na cidade da Praia um memorial em sua homenagem, resultante de uma oferta da República Popular da China. Na sua base encontra-se hoje um pequeno museu. Sob o pedestal, ergue-se, no topo, uma estátua de bronze com aproximadamente três metros de altura. Apesar de ostentar o famoso sumbia na cabeça, o facto de Cabral, de livro na mão, não surgir com as expressões ou o vestuário que usaria durante os tempos da luta, mas com uma pesada gabardina e uma pose rígida, resultado do que teria sido um mimetismo das estátuas dos líderes políticos asiáticos, gerou algum desconforto entre certos setores da população. O mesmo sucede com a localização escolhida para o memorial.

Em junho de 2020, Gilson Varela Lopes, um jovem cabo-verdiano a viver no Luxemburgo, apresentou uma petição online que solicitava a remoção da estátua do navegador português Diogo Gomes de junto do palácio presidencial, onde tinha sido recolocada na sequência da transição mnemónica que mencionámos acima. A petição acabou por desencadear algum debate. No texto sustentava-se que Diogo Gomes era “um navegador que também traficava escravos em part-time” e fazia-se explícita articulação com o que vinha acontecendo recentemente no contexto internacional — o questionamento de estátuas coloniais e as manifestações antirracistas. A petição terminava propondo que a figura em mármore de Diogo Gomes fosse substituída pela estátua de Amílcar Cabral, movendo esta última para o lugar nobre da primeira. Enquanto isso, na Guiné, já em 2002 o filme Nha Fala, de Flora Gomes, sinalizava a relação difícil (e ambígua) com a memória de Cabral. Nele, vemos um busto do líder anticolonial a ser transportado incessantemente, sem poiso digno onde ser colocado, com janelas e portadas a fecharem-se à sua passagem.

Outras representações

Em Cabo Verde, estruturas como a Associação de Combatentes da Liberdade da Pátria e a Fundação Amílcar Cabral, que contam nos corpos gerentes com antigos combatentes, muitos deles com ligação histórica ao PAIGC/CV, têm feito um trabalho centrado na valorização do legado da luta e de Cabral. A figura de Amílcar Cabral tem também, muito recentemente, sido mobilizada para fins pedagógicos e recreativos na literatura infanto-juvenil. Em 2019, surgiram duas obras ilustradas no âmbito destas temáticas. O primeiro a ser lançado foi o livro A Turma do Cabralinho e o Búzio Mágico, com texto de Marilene Pereira e ilustração de Coralie Tavares Silva, e que se inspira na famosa banda desenhada brasileira A Turma da Mônica, apresentando Cabralinho como o líder de um grupo de crianças curiosas, todas elas fazendo referência a figuras históricas da luta. Logo de seguida sairá o livro Eu, Amílcar, com texto de Marilene Pereira e ilustrações de Renato Athayde, em que o revolucionário conta a sua vida na primeira pessoa.

O teor quase mitológico da presença de Cabral no imaginário social é anterior ao seu assassinato e suplanta aquelas que são as memorializações vinculadas ao Estado e ao campo mediático e político. Autores como Cláudio Furtado e testemunhos como os de Pedro Pires e Pedro Martins, que de diferentes formas estiveram envolvidos na luta de libertação, notam como nas comunidades rurais no interior da ilha de Santiago era comum a crença de que Cabral aparecia, em diferentes disfarces e circunstâncias, para minorar o sofrimento da população. Uma outra expressão disso é a apropriação peculiar que vai adquirir junto dos rabelados, comunidades rurais do interior da ilha com práticas religiosas próprias e uma história de recusa do Estado e onde Amílcar Cabral é heroicizado, ou até mesmo deificado.

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A ilustradora Coralie Tavares Silva com o livro de BD A Turma de Cabralinho e as Bruxas de Monte Vermelho, que foi lançado há dois meses Facebook de Corart & Graphic Design

Algo semelhante, embora num contexto muito distinto, ocorre no quadro do racionalismo cristão, uma corrente espírita criada no Brasil no início do século XX que ganhou relevo em Cabo Verde, particularmente na ilha de São Vicente, onde se instalou há mais de um século. Como sublinham os trabalhos de João Vasconcelos, Cabral surge aqui como um espírito superior — ou de luz — e uma das suas filiais no Mindelo apresenta-o como seu “presidente astral”, ou seja, uma espécie de tutor espiritual do centro, que aí surgiria frequentemente para deixar mensagens e comunicações.

Cabral hoje

Para além daqueles exemplos, uma presença constante da sua imagem dá-se igualmente no domínio musical, particularmente no campo do rap e do hip-hop, como Redy Wilson Lima e Miguel de Barros estudaram para os casos da Guiné e de Cabo Verde. Estas representações surgem a partir de extratos da juventude politizados e/ou relacionados com a diáspora. Nelas, Cabral é reatualizado, entre outros, como “mensageiro da verdade” que é convocado como fator de orgulho e como figura de crítica aos poderes políticos, acusados de esquecer os seus ensinamentos e de desvirtuar as aspirações das populações.

Na Guiné, a memória da bem-sucedida guerra de libertação e do seu líder são elementos redentores aos quais se regressa para projetar a incumprida esperança num futuro justo. Em Cabo Verde, merece referência a Marxa Kabral, organizada todos os anos, a 20 de janeiro, e hoje dinamizada por coletivos pan-africanistas e pela associação Pilorinhu, instalada no Bairro da Achada Grande Frente, onde, aliás, em 2019, foi inaugurado um grande mural de Cabral, feito por Vhils.

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A Marxa Kabral é organizada todos os anos, a 20 de janeiro Inês Nascimento Rodrigues

A Marxa percorre artérias da capital e afirma-se como uma espécie de performance alternativa aos processos de institucionalização da figura do revolucionário. A evocação de Cabral é, na verdade, não apenas uma ocasião para lembrar o seu trajeto político e os seus ensinamentos teóricos, mas também um momento de afirmação de “africanidade”, patente, entre outros, na escolha de vestuário, de penteados e de música, nas palavras de ordem ou até no uso da capoeira enquanto símbolo globalizado de “resistência negra”. É, ainda, um momento de desafio aos poderes dominantes, num arquipélago onde a juventude enfrenta altas taxas de desemprego e em que alguns setores observam os ideais da luta — e de Cabral — como tendo sido “traídos” pelos governantes de agora.

Tanto na Guiné como em Cabo Verde, Amílcar Cabral é, assim, ainda hoje, gerador de multívocos sentidos de futuro.


Miguel Cardina é investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES) e autor de Remembering the Liberation Struggles in Cape Verde. A mnemohistory (com Inês Nascimento Rodrigues, Routledge, 2022) e O Atrito da Memória. Colonialismo, Guerra e Descolonização no Portugal Contemporâneo (ed. italiana pela Meltemi; ed. portuguesa pela Tinta-da-china, no prelo, 2023).

Inês Nascimento Rodrigues é investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES). É autora de várias publicações, entre as quais os livros Remembering the Liberation Struggles in Cape Verde. A mnemohistory (com Miguel Cardina, Routledge, 2022) e Espectros de Batepá. Memórias e narrativas do “Massacre de 1953” em São Tomé e Príncipe (Afrontamento, 2018).


Referências bibliográficas

Miguel Cardina e Inês Nascimento Rodrigues (2022), Remembering the Liberation Struggles in Cape Verde. A mnemohistory. Londres e Nova Iorque: Routledge.

Miguel de Barros e Redy Wilson Lima (2013), Rap Kriol(u): the pan-Africanism of Cabral in the music of youth, in Firoze Manji e Bill Fletcher Jr. (org.), Claim no easy victories: the legacy of Amilcar Cabral. Dakar: Codesria e Daraja Press, p. 387-404.

Victor Barros (2021), Between truth and invention. How public commemorations recite the biography of Amílcar Cabral, in Anais Angelo (org.), The Politics of Biography in Africa. Borders, Margins, and Alternative Histories of Power. London; New York: Routledge, p. 97-117.

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