A inteligência do que não é artificial

A verdadeira humanização dos cuidados de saúde será aquela que conseguir aproximar mais os cuidadores das pessoas cuidadas, ou a cuidar, independentemente da classificação que se lhe queira adicionar.

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Numa época em que tanto se discute a falta de humanização nos cuidados de saúde, sobretudo no que respeita ao envelhecimento da população e das camadas ditas mais vulneráveis, parece-me que falar de Inteligência Artificial enquanto tecnologia substituta do contacto pessoal, do afeto, do carinho e de toda a atenção "humanizada" de que necessitam as pessoas que são quase forçadas à institucionalização é um pouco prematuro e desonesto.

As melhorias que se procuram satisfazer na área da saúde são, essencialmente, as de índole financeira, de otimização e de satisfação dos recursos. Contrariamente ao que seria de esperar, pelos acontecimentos recentes verificados em todo o mundo e pelas sequelas que a pandemia teima em esconder, o mundo tecnológico procura a oportunidade de substituir a atividade física e sensorial do homem, deixando para trás as inúmeras vantagens de uma crescente relação humana que deveria servir para prevenir a erosão prematura, quer pela idade, quer pela situação familiar, de quem se vê sozinho e sem os cuidados de proximidade tão necessários para os mais velhos e para os mais desprotegidos.

A Inteligência Artificial não terá sentimentos. Não terá a emoção real da alegria ou da tristeza, da presença ou da saudade nem, sequer, do amor. Não saberá valorizar a história de vida de cada ser humano, pelos valores individuais que sempre cultivou, ou pelo seu contributo à sociedade. Pelo contrário, obedecerá a algoritmos criados pela certeza matemática que caracteriza as diversas linguagens de programação, mesmo as consideradas mais "user friendly", ou mais promissoras para a economia digital.

A verdadeira humanização dos cuidados de saúde será aquela que conseguir aproximar mais os cuidadores das pessoas cuidadas, ou a cuidar, independentemente da classificação que se lhe queira adicionar. Para isso, é necessário uma aposta clara em novas profissões ou, sendo essa possibilidade sistematicamente vetada, como tem acontecido nos últimos anos, criadas novas categorias profissionais que façam uma verdadeira ponte entre os cuidados passados, os cuidados presentes e os cuidados dos quais, num futuro muito próximo, vamos precisar de forma abundante e que teremos de ser capazes de implementar para todas as pessoas, em todas as faixas etárias, independentemente da sua condição física ou de dependência.

Olhando para a rede de cuidados existente no nosso país, verifica-se que ela foi exclusivamente pensada para as estruturas e para a criação física de espaços onde seja possível “tratar” pessoas, não de cuidar delas. Por essa razão, aqueles que pretendem cuidar dos seus familiares, dos seus idosos ou dos seus dependentes que sofrem de algum tipo de limitação física, orgânica, sensitiva ou intelectual (entendidas como pessoas com deficiência), fazem-no em casa, sacrificando a sua vida familiar, a sua carreira e, quase sempre, a sua saúde física e mental. Existe, aliás, um novo debate em torno das soluções que ainda não foram sequer pensadas para fazer face à degradação da saúde psicológica de quem cuida. Apenas se fala em combater a doença mental, não em preveni-la.

O modelo de assistência pessoal, em fase experimental no nosso país e imposto por uma lei ainda provisória, já demonstrou que não é possível adiar mais aquilo que, há muitos anos, as pessoas mais dependentes e as suas famílias, reclamam. Os vários estudos e avaliações intercalares, que são do domínio público, já deveriam ter provocado nos decisores a reação que era esperada. Agir rapidamente e criar uma legislação definitiva que tenha um enquadramento jurídico que permita não excluir ninguém. Para isso, bastaria avaliar o que outros países já fizeram de forma inteligente, sem artificialidades.

A Inteligência Artificial fará o seu caminho.

As pessoas há muito tempo que estão a fazê-lo.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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