O Papa Francisco: feminista como nós

A obra de Marguerite Porete, que não está traduzida para português, encontraria na visita do Santo Padre e na Jornada Mundial de Juventude uma oportunidade de ouro para ser publicada em Portugal.

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Faltam menos de 50 dias para que o Papa Francisco chegue a Portugal, numa já confirmada visita de Estado enquanto chefe de Estado do Vaticano, e a Lisboa, enquanto primeiro peregrino das Jornadas Mundiais da Juventude Lisboa 2023.

Com Francisco chega também todo um movimento feminista que teve início no final da Alta Idade Média e que ficou conhecido pelo trabalho social, intelectual, religioso e económico levado a cabo por um grupo de mulheres cristãs, leigas, sem obrigatoriedade da clausura, castidade ou abnegação da vida em sociedade, mulheres essas que ficaram para a história como "beguinas" e como tendo estado na origem da criação da doutrina da Ordem Franciscana.

31 de maio de 1310, domingo de Pentecostes: a beguina Marguerite Porete, intelectual proscrita que viveu na Idade Média, que terá nascido por volta de 1260 (não se sabendo ao certo a data) no condado de Hainaut, território multiétnico pertencente ao Sacro Império Greco-Romano, e morrido a 1 de junho de 1310, viu entregue pela autoridade secular a sua sentença de morte num acordo entre teólogos que contou com o beneplácito de Filipe IV, rei de França.

Marguerite Porete, não cedendo a retractar-se relativamente aos seus escritos filosóficos e teológicos de pendor espiritualista e criacionista, que defendiam o amor térreo como via sacra até Deus, nas suas palavras “Amai e fazei tudo o que quiserdes”, que já haviam sido acusados de hereges por Dom Guy de Colmier, bispo de Cambrai, foi feita prisioneira pelo seu inquisidor, Guglielmo Humbert, em 1309, preferindo a fogueira na qual se apresentou de punho firme, com o seu livro na mão, recitando-o incessantemente em picardo (uma das línguas francesas, na altura considerada vernáculo, uma vez que a língua franca era o latim).

A sua obra, perseguida, queimada e proibida, Le Miroir des amês simples (et qui seulement demeurent en vouloir et désir d’amour), escrita por volta de 1290, defendeu-a até ao fim, não como desvio das escrituras sagradas, mas num ativismo que todas e muitos defendem até aos dias de hoje: mulheres que falam.

Foto
Le Miroir des âmes, manuscrit Chantilly du XIVe siècle, Musée Condé DR

A obra de Marguerite Porete, apesar de em grande parte destruída durante a Inquisição, sobreviveu graças aos muitos manuscritos e cópias em diferentes línguas, como o latim e o inglês, asseguradas pelo movimento das mulheres beguinas, do qual Marguerite Porete fazia parte.

A autoria dos seus escritos só lhe foi reconhecida em 1944 pela historiadora Romana Guarnieri, após uma longa investigação junto dos arquivos da Inquisição.

A obra, que não está traduzida para português, encontraria neste grande encontro por ocasião da visita do Santo Padre uma oportunidade de ouro para ser publicada na também língua oficial da Jornada Mundial da Juventude, o português. Tal honraria inequivocamente o próprio Papa Francisco, devoto de Maria, que tem nesta como na anterior Jornada Mundial da Juventude o centro da sua reflexão. Este ano com a temática: “Maria levantou-se e partiu apressadamente” (Lucas 1, 39).

Também nós mulheres feministas devemos levantar-nos e partir apressadamente, de punho firme e voz destemida, defendendo, como o fizeram Porete e as beguinas, o nosso papel primeiro – porque primeira foi também Maria Madalena, apóstola dos apóstolos e escriba de um dos textos do Evangelho – na organização da sociedade, combatendo de pé a fogueira machista, classista, eurocêntrica, falocêntrica e patriarcal.

As beguinas, mulheres cultas que trabalhavam como médicas, enfermeiras, professoras, mas também mulheres humildes que trabalhavam como comerciantes, tecelãs, artesãs ou serviçais, surtiam proveito próprio o qual faziam reverter para o apoio dos mais pobre e carenciados; podiam escolher dedicar-se a Deus, podiam escolher casar-se e viver em matrimónio, mas também podiam escolher ser independentes.

Como não pertenciam a nenhuma autoridade eclesiástica, as beguinas não viviam sob as regras e as normas do clero, mas segundo os seus próprios princípios, promovendo e colocando em prática o poder das mulheres, influenciando a sociedade, contribuindo para a educação e ensino dos jovens e das crianças, para a qualidade nos cuidados de saúde, para o desenvolvimento do tecido económico, fazendo com que o próprio rei Filipe IV de França sentisse o seu poder colocado em causa.

Estas ações prementemente feministas culminam com a pressão exercida também pelo monarca francês na elaboração de um cânone pelo Concílio de Viena que condena, por heresia, o movimento das beguinas.

Por estas mulheres que já no século XII incorporavam os ideais feministas que nos dias de hoje ainda não conseguimos ver postulados, levantemo-nos apressadamente para receber um filho do movimento feminista, o Papa Francisco, reclamando a palavra aos nossos lugares oprimidos por um poder global estruturalmente machista.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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