O homem que perdeu um Tour difícil de perder ganhou um Giro difícil de ganhar

Primoz Roglic venceu pela primeira vez uma grande Volta fora do território espanhol. João Almeida acaba por ir para casa com um pódio - e um sorriso.

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Primoz Roglic celebra em Itália EPA/LUCA ZENNARO
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Era uma vez um ciclista muito bom a escalar montanhas, mas que, um dia, ganhou um trauma numa subida que lhe tirou uma conquista que parecia mais do que certa. Agora, quase de raiva, levou a cabo uma redenção suprema – tinha perdido tudo na última vez que tinha feito uma crono-escalada numa “grande volta” e agora tudo ganhou quanto voltou a fazer-se à estrada numa etapa com este perfil.

Primoz Roglic é o novo campeão da Volta a Itália, vencendo neste domingo, pela primeira vez, uma “grande volta” fora de território espanhol.

Sobre este ciclista esloveno há pouco ou nada para dizer que seja novidade. Sabemos que começou a carreira de desportista nos saltos de esqui, que se iniciou muito tarde no ciclismo e que se tornou, ainda assim, um campeão. Também sabemos que faz parte da geração tremenda de desportistas da pequena Eslovénia, com Luka Doncic, Tina Maze e o também ciclista Tadej Pogacar.

O que não sabíamos, mas ficámos a saber, é que Roglic tem, afinal, a força mental que chegou a parecer discutível. No dia em que regressou a uma crono-escalada, os demónios da Volta a França perdida numa “crono”, em 2020, poderiam enevoar o pensamento e congelar as pernas de quem já tudo tinha perdido num dia destes.

Neste caso, em Itália, falávamos também, segundo Alberto Contador, do mais duro contra-relógio da história das “grandes voltas”.

Tu, aqui?

Mas Roglic, porventura com laivos de raiva, tratou de destruir Geraint Thomas e João Almeida. Se dúvidas existissem, ficaram vazias de nexo quando a corrente da bicicleta de Roglic saltou em plena etapa.

Apesar de já estar claro que ia vencer o Giro, esse momento poderia ser um golpe de teatro dramático, como já tinha sido o tal em que deixou Pogacar roubar-lhe o Tour 2020.

Mas Roglic saiu da bicicleta, recolocou a corrente no devido lugar e seguiu caminho. E ainda venceu com uma vantagem considerável, recuperando os 26 segundos que Thomas tinha de vantagem, acrescentando-lhes mais 14.

Serve este contexto sobre a penúltima etapa da Volta a Itália para explicar que aquilo que foi confirmado neste domingo, na tirada final, é mais do que uma vitória desportiva – para Roglic, será uma conquista mental tremenda, podendo, aos 33 anos, garantir que não terminará a carreira como homem que perdeu um Tour de forma incrível. É agora, também, o homem que venceu o Giro de forma incrível.

E atentemos na seguinte história, por confirmar no sábado, mas já certa neste domingo. A dada altura do contra-relógio da penúltima etapa, a corrente da bicicleta de Roglic saltou e o esloveno, depois de a recolocar no devido lugar, foi empurrado por um espectador de camisola vermelha. Era Mitja Meznar, ex-saltador de esqui que chegou a fazer equipa com Roglic e que estava naquele lugar por coincidência – e outros ex-colegas de esqui estavam poucos metros mais adiante.

No momento em que precisava de sobreviver a um azar, Roglic tinha na berma da estrada, naquele exacto local – e por mero acaso – um amigo e ex-colega dos tempos em que andava nos desportos de neve.

O esquiador que virou ciclista teve ajuda do ex-esquiador que estava ali para ajudar o ciclista. Foi divertido.

Almeida com emoções mistas

O Giro que agora termina com vitória de Mark Cavendish na etapa final, num desfecho ao sprint, dá também a João Almeida um resultado histórico.

Nunca tinha estado no pódio de uma “grande volta” e arrebata o prémio de melhor jovem em prova – classificação secundária, mas que atesta, no mínimo, que terá, na idade de Thomas ou Roglic, uma experiência tremenda nas pernas.

Ao contrário de noutras ocasiões, não pareceu que, neste Giro, fosse a falta de equipa ou as estratégias colectivas erráticas a limitarem o desempenho do português.

Colectivamente, a Emirates deixou claro desde cedo que Almeida era o líder, quando deixou Jay Vine sozinho num mau dia do australiano. Individualmente, Vine foi o “anjo da guarda” de Almeida no dia em que o português mais sofreu, “rebocando-o” subida acima.

Em suma, aquilo que Almeida não conseguiu fazer – vencer o Giro – pareceu dever-se a pura e simples incapacidade de rolar com a capacidade de Thomas e Roglic.

Não teve quedas graves, não teve problemas mecânicos limitadores e não teve especiais azares. O problema é que também não teve, em alguns momentos, pernas para o britânico e o esloveno.

Ainda assim, Almeida sai do Giro com o objectivo a que se propôs – sempre falou de pódio –, mesmo que possamos pensar se haveria lugar para si caso Remco Evenepoel e Tao Geoghegan Hart não tivessem saído da corrida com covid-19.

O contexto sugere-nos que esta era das melhores oportunidades de Almeida para vencer um Giro, e esse é o copo meio-vazio, mas essa premissa perde força se olharmos para o cartão de cidadão de alguém que ainda só somou 24 aniversários – aos 24 anos, Primoz Roglic tinha acabado de trocar o esqui pelo ciclismo.

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