#vergonha.do.estado.a.que.a.política.chegou

Com que pesar vejo o mau uso da democracia e a permissividade que se instalou relativamente a quem maltrata os valores de Abril, conspurca o discurso político e agride cidadãos!

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Vêm estas linhas a propósito de um cartaz político que enfeita uma rotunda em que diariamente tenho de circular. Acontece que no dito cartaz, em rodapé oposto à faraónica imagem do líder partidário, figuram quatro fotografias: de um atual ministro, do primeiro-ministro, de um ex-primeiro ministro e de um ex-banqueiro. Não é difícil inferir que, por detrás do cartaz, está a intenção de denunciar figuras que “alegadamente” desgraçaram o país e/ou que “efetivamente” caíram – ou estão a cair – em desgraça na opinião pública. (Sublinho o advérbio “alegadamente” porque alguns dos visados têm ainda processos judiciais a decorrer e sublinho o advérbio “efetivamente” porque são, de facto, tema de conversas inconsequentes de esplanadas para destilar frustrações do dia-a-dia).

Foto

Voltando ao referido cartaz, as fotografias das ditas figuras são a preto e branco e esbatidas, a anunciar, possivelmente, um estatuto espectral numa sociedade que outrora se curvou ao seu poder e têm, para além disso, um “X” em cada rosto, no mesmo tom de vermelho do epigráfico #vergonha que encima o cartaz.

Ainda que a linguagem publicitária me tenha instintivamente chocado, a correria quotidiana havia-me privado de qualquer análise a essa minha reação. E foi a desavisada inocência de uma criança sobre o referido cartaz que me suscitou a presente reflexão, pois pôs a nu o carácter indecoroso de tal pérola publicitária. «Aquele senhor matou aquelas pessoas?» Disse obviamente que não e ouvi a seguinte contrarresposta: «Se não estão mortos, são assassinos ou bandidos.»

Vem isto a propósito do facto de estarmos a viver tempos de gritante desrespeito pelas mais elementares regras da ética, do bom senso e da boa educação. Ainda que possa ser compreensível que numa mesa de café o cidadão comum se entretenha a destratar governantes ou ex-governantes e ex-banqueiros e treinadores e futebolistas e jornalistas (é disto também que se faz a democracia), o mesmo já não se pode dizer daqueles que superiormente nos representam. A apropriação dos impropérios de esplanada por parte de figuras com responsabilidade política é, sem eufemismos, degradante, ofensiva e inadmissível.

E novamente voltando ao cartaz, a agressividade publicitária do mesmo, se por um lado é atentatória do bom nome e da dignidade dos “senhores das fotografias”, por outro lado não deixa de indignar todos os que não se reveem num estilo de fazer política acintoso e trauliteiro. É uma afronta a todos aqueles que (admito que com esforço) vão tentando acreditar no Estado de Direito e no funcionamento da justiça (reitero que, ainda que os visados tivessem sido efetivamente julgados e condenados, não consta em nenhuma moldura penal “exposição de foto à laia de Far West”).

Vem isto também a propósito de ser um cartaz exibido numa rotunda de uma cidade do meu país. Não se trata de um qualquer arrazoado subversivo grafitado à sorrelfa num qualquer prédio devoluto ou gatafunhado com raiva no anonimato de uma porta de casa de banho. Trata-se de um espaço seguramente licenciado para o efeito.

A purga que aí se anuncia (“Portugal precisa de uma limpeza”) e os retratos dos visados com um “X” em cima têm flagrantes semelhanças com um qualquer slogan de uma qualquer empresa de desratização ou de exterminação de pragas.

E fico-me por esta analogia, por demais degradante, para não recuar aos idos anos 30 do século XX e à alvorada das políticas nacional-socialistas por terras germânicas que também prometiam restaurar a ordem e o orgulho nacionais. Também aí se prometia “limpar” o país de seres impuros, parasitas e párias do Estado.

Meio século volvido sobre o 25 de Abril, com que pesar vejo o mau uso da democracia e a permissividade que se instalou relativamente a quem maltrata os valores de Abril, conspurca o discurso político e agride cidadãos! Por tudo isto, e a propósito de um cartaz que enfeita uma rotunda da cidade em que vivo: #vergonha.do.estado.a.que.a.política.chegou.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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