Democratas sem democracia: as não tão incomuns idiossincrasias turcas

As pessoas gostam da liberdade e da democracia, mas não se incomodam perante atentados aos seus direitos...

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As velhas democracias europeias espantam-se perante os surpreendentes 89% de participação eleitoral na Turquia. Para os mais atentos olhos ocidentais, surpreende de igual forma que uma sociedade que tão massivamente adere a um momento democrático que nós temos vindo a desvalorizar acabe, paradoxalmente, por dar uma maioria relativa àquele que mais tem delapidado as conquistas democráticas deste nosso vizinho sui generis.

A Turquia não é, infelizmente, caso único num mundo em que, desde 2021, a maior parte dos seres humanos vive num Estado autocrático. E esta é a tendência contemporânea de descrédito da política e do establishment com causas bem identificadas, mas sem soluções à vista: as pessoas gostam da liberdade e da democracia, mas não se incomodam perante atentados aos seus direitos. O sistema que a Grécia Clássica começou incipientemente a desenhar está a desintegrar-se com os séculos, criando paradoxoscujos impactos os teóricos não conseguem antecipar ou prevenir.

O (segundo, desde abril,) país mais populoso do mundo organiza eleições com apenas um partido disponível nos boletins; o primeiro tem uma democracia à deriva; o maior, geograficamente, tem eleições mas persegue e mata a oposição; a maior democracia em África está perante uma crise económica, social, política e de segurança com resultados eleitorais contestados; um dos poucos Estados não muçulmanos no Médio Oriente tem um regime quase tão duro quanto aquele que quase causava a destruição completa do povo que o compõe; o maior país da América Latina foi presidido há pouco tempo por um negacionista da ciência, da igualdade e do respeito pelas minorias; e um Estado-membro da União Europeia recuou em direitos fundamentais básicos, controlando inclusivamente as universidades que lhes preparam doutrinalmente os altos quadros para os anos vindouros. Ora, as contas começam a ficar apertadas para as democracias: China, Índia, Rússia, Nigéria, Israel, Brasil e Hungria são apenas exemplos de uma muito longa lista.

A Turquia faz parte dessa lista e reflete o que academicamente se assumiu há anos: democracia formal ou institucional não é necessariamente sinónimo de democracia substantiva.

A existência de eleições e instituições (mesmo que democráticas) são apenas formas sem conteúdo; moldes sem massa; forma sem substância: falta a cultura política democrática, essa que exige aprendizagem e interiorização das regras mas também de uma perceção generalizada de que a democracia é a única via possível para a gestão política de uma comunidade.

Na Turquia, o pluripartidarismo remonta à década de 40, entrecortado com vários golpes de Estado (os reais, não ficcionados, do século XX) e as conquistas que se alcançaram de interiorização dos valores e princípios democráticos foram sucessivamente cortadas por Erdogan: estados de emergência contínuos, desrespeito por minorias étnicas e de orientação sexual, retrocessos nos direitos das mulheres, coerção sobre meios de comunicação, bloqueios de redes sociais e jornalistas presos, uma diáspora enorme de académicos espalhados pelo mundo sem perspetivas de regressar às suas universidades, corrupção, nepotismo, inflação e perseguições políticas através da manipulação dos tribunais que perderam independência e a noção de justiça.

Os resultados da primeira volta das eleições na Turquia demonstram exatamente isto: os tentáculos de um regime autocrático são asfixiantes; quanto menos oxigénio (e liberdade) circular, mais difícil será reverter os efeitos da asfixia. Se colocarmos de lado potenciais interferências russas e a vantagem que o partido no poder tem sobre tribunais e a administração pública, vemos 30 milhões de votos que preferem o dano do conhecido à esperança numa mudança que lhes começa a ser estranha, tantos anos já passaram desde que sentiram a liberdade plena.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

Não sabemos ainda o que ocorrerá a 28 de maio, mas há o sério risco de a Turquia se manter na perigosa lista dos países cheios de democratas sem democracia. E, em 5 anos, não haverá democracia mas também não haverá democratas.

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