Aclarem as negras! De Cleópatra à Nossa Senhora de Czestochowska

O impulso para o branqueamento das mulheres negras é secular, nele tropeçamos repetidamente, sendo as distorções históricas e as questões de representação mais que muitas.

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Lembram-se quando Joe Biden afirmou, dirigindo-se a apoiantes negros de Donald Trump, ‘you ain’t black!’?

Pois, agora quem aponta o dedo é um arqueólogo egípcio enraivecido com o trailer da nova produção da Netflix que põe o dedo na ferida acerca da tão provável melanina de Cleópatra, uma mulher que reinou num tempo em que os ideais da civilização greco-romana estavam longe da matriz falocêntrica e patriarcal que começou a redefinir o mundo ocidental após a Queda de Constantinopla, em 1453.

É tão provável que Cristo não fosse loiro de olhos azuis como é ter sido negra Cleópatra; e se a questão do Photoshop é de menos importância, a questão do duplo branqueamento – das mulheres, em geral, e das mulheres negras, em particular – merece, sem dúvida, reflexão. É que a figura de Cleópatra só reforça a importância de poder matriarcal na construção política, geográfica e estratégica do ideário civilizacional.

O impulso para o branqueamento das mulheres negras é secular, nele tropeçamos repetidamente, sendo as distorções históricas e as questões de representação mais que muitas. Olhemos para o caso da representação de outra mulher, soberana e negra que também já resultou numa produção da Netflix: a da Rainha Njinga Mbande.

Ilustrada em 1830 pelo pintor francês Achille Devéria, Njinga Mbande viu os seus traços fisionómicos profundamente alterados para melhor servir o ideário de beleza narcísico.

Njinga, a mais célebre Rainha da Matamba (cujos territórios são, atualmente, parte integrante de Angola), partilhava com Cleópatra o género feminino, o estatuto aristocrata, o poder matriarcal, a origem territorial africana, protagonizando mais uma prova de que em África o poder político já se exercia muito para além do que Leopoldo II da Bélgica poderia alguma vez imaginar. Neste ponto vale a pena ler o artigo do historiador e investigador Alberto Oliveira Pinto, “Representações culturais da Rainha Njinga Mbandi (c.1582- 1663) no discurso colonial e no discurso nacionalista angolano” publicado na revista Estudos Imagética da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em 2014.

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Viajemos agora até à Polónia, terra de João Paulo II, o Papa polaco, e à imagem de Nossa Senhora de Częstochowska, também conhecida por Virgem Negra, obra cuja autoria é apontada ao apóstolo São Lucas e que tem merecido um incalculável número quer de peregrinações, quer interrogações: o que estará por detrás da representação de Nossa Senhora como uma mulher não-branca? Novamente, torna-se impossível não questionar: porque é que a obra foi tantas vezes escondida e marginalizada, só reconhecida em 1717 pelo Papa Clemente XI?

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As representações são espelho da realidade e permitem reconstruir factos da história que foram ocultados ou são, simplesmente, atos plásticos e de criatividade que dependem exclusivamente do artista e nunca do elemento que esteve na origem da criação? Perceber isto também é recuperar os lugares das mulheres na história, que podem bem nunca se terem reduzido a lugares de dependência de um sexo perante o outro, da supremacia de um fenótipo diante de outro.

Recordam-se quando a Academia dos Óscares decidiu finalmente atribuir o galardão de melhor atriz a uma mulher negra? Qual a questão que mais discussão levantou? Pois, também foi essa: a mulher negra galardoada, aos olhos do mundo, era uma mulher negra “clara”. A pergunta impõe-se: podem as mulheres negras ter representatividade? Eventualmente, desde que sejam claras.

Clareiem-se as negras!

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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