Centenas de caravelas-portuguesas estão a dar à costa. O que fazer se for picado?

Há mais caravelas-portuguesas a dar à costa do nosso país, o que pode significar um aumento de contactos indesejados com pessoas. A picada é dolorosa, pode causar reacções alérgicas e até ser fatal.

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Caravela-portuguesa avistada em Peniche Nelson Vitorino/GelAvista
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Caravela-portuguesa fotografada no Faial e enviada para o projecto de ciência-cidadã GelAvista João Garcia/GelAvista

Há mais caravelas-portuguesas a dar à costa do nosso país, um fenómeno que está associado às alterações climáticas. Só na última semana de Abril, estes organismos aquáticos foram avistados em 18 praias do continente e das ilhas. A chegada aos areais de um número cada vez maior destas criaturas gelatinosas, que podem causar lesões graves e dolorosas na pele humana, exige uma “maior sensibilização” não só da população, mas também “dos profissionais de saúde”.

Na semana passada, foram registados avistamentos um pouco por todo país – da Póvoa de Varzim a Aljezur, além da presença recorrente nos arquipélagos (Faial, São Jorge, Terceira, São Miguel, Funchal e Santa Cruz, por exemplo). Relativamente aos primeiros três dias do mês de Maio, já foram identificadas caravelas-portuguesas em 29 praias de Ovar a Aljezur (continente), Angra do Heroísmo, Ponta Delgada, Vila Franca do Campo e Lagoa (Açores) e Funchal e Porto Santo (Madeira). Desde 2 de Janeiro de 2023, já foram registados 583 avistamentos em Portugal, dos quais 230 são referentes à caravela-portuguesa.

“Há aqui certamente um ângulo climático. Estamos neste momento a analisar os dados dos últimos sete anos precisamente para compreender de que modo a mudança do clima está a influenciar os arrojamentos. Há um aumento de ocorrências e estamos a tentar perceber que razões estão por trás disso”, explica ao PÚBLICO Antonina dos Santos, investigadora do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) e responsável pelo projecto GelAvista.

O que é um arrojamento?

Arrojamentos é o nome que se dá às situações em que animais marinhos ficam encalhados na costa. “É sempre uma circunstância trágica para as caravelas-portuguesas, que não têm grande controlo sobre os movimentos e já não conseguem regressar ao mar”, explica a cientista. Embora estes fenómenos sejam naturais, eles tendiam a ser ocasionais e a obedecer uma certa sazonalidade e recorrência geográfica. Agora, há uma “visível” multiplicação e variabilidade destes episódios.

“Estes arrojamentos deixam de ser naturais, quando são em muito maior número, dez ou 20 caravelas numa mesma zona, por exemplo. Começa a haver também muita variabilidade; normalmente surgem no fim da Primavera, até ao Verão, mas há anos em que aparecem em pleno Inverno”, relata Antonina dos Santos.

Há diferentes aspectos das alterações climáticas que podem estar relacionados com o aumento de seres gelatinosos nas praias – além das caravelas-portuguesas (Physalia physalis), também têm sido avistados veleiros (Velella velella) em Portugal. A mudança do clima potencia a subida dos termómetros do planeta e promove a expansão térmica do oceano. Além da temperatura das águas, há uma variabilidade a ter em conta não só na sazonalidade, mas também na direcção e na intensidade dos ventos ou das correntes.

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As caravelas-portuguesas têm o aspecto de um balão colorido, com tons fascinantes que podem variar entre os azuis e os violetas Sergio Serjão/Pixabay

As caravelas são como uma aldeia

As caravelas-portuguesas são assim chamadas porque se assemelham a embarcações antigas a flutuar na água. Têm o aspecto de um balão colorido, com tons fascinantes que podem variar entre os azuis e os violetas. Os tentáculos, que podem chegar aos 30 metros de comprimento, possuem células urticantes e podem “chicotear” banhistas que estejam nas imediações. Mesmo mortas no areal, estas criaturas aquáticas continuam a causar queimaduras e, por isso, não se deve tocar-lhes.

Uma caravela-portuguesa não equivale a um indivíduo, mas sim a um grupo de seres especializados em diferentes tarefas. Juntos formam um só organismo. Complicado? Sim, até os próprios especialistas têm dificuldade em explicar o funcionamento da Physalia physalis de uma forma simples. Quando Antonina dos Santos vai às escolas, a cientista costuma recorrer à metáfora da aldeia: nessa povoação, cada cidadão tem uma função e o grupo não pode funcionar bem, se um dos habitantes partir.

“Costumo falar dessa pequena aldeia que vaga pelo oceano e que não pode perder habitantes; onde um se responsabiliza pela flutuação, ao passo que outro pela aquisição de alimentos”, conta a cientista do IPMA. Sem o pneumatóforo – uma espécie de bexiga que retém o ar e assegura a flutuação –, por exemplo, as caravelas portuguesas não conseguiriam manter-se à superfície.

O programa de ciência cidadã GelAvista, criado em Fevereiro de 2016, monitoriza os organismos gelatinosos em todo país. Até ao dia 4 de Maio, foi registado um total de 14486 avistamentos, dos quais 2818 correspondiam à caravela-portuguesa. O conjunto de informação recolhida ao longo dos últimos sete anos constitui uma “boa série de dados”, ainda que esta não seja perfeita para o estudo de questões ligadas às alterações climáticas, uma vez que a investigação no domínio do clima costuma exigir séries de dados com três ou mais décadas. Ainda assim, a informação reunida já permite observar um aumento do número de avistamentos.

O GelAvista recebe todos os dias informações relativas a avistamentos. São pessoas que estão a caminhar numa praia, vêem um organismo gelatinoso e comunicam ao IPMA o avistamento juntamente com uma imagem. “Estamos agora a receber tantas mensagens [por email e através da aplicação] que temos hoje uma pessoa só a tratar disso. Até agora, já contabilizámos apenas no dia de hoje um total de 40 avistamentos”, refere a investigadora. As caravelas-portuguesas constituem a espécie “mais perigosa de todos os gelatinosos que ocorrem em Portugal”, refere a página do GelAvista.

Riscos para a saúde humana

O aumento do número de avistamentos é uma má notícia tanto para as caravelas-portuguesas como para nós, humanos. Se, por um lado, um animal marinho encalhado tem uma morte certa, por outro, a multiplicação de organismos gelatinosos no areal aumenta a probabilidade de encontros indesejados com pessoas. Isto, porque estes animais, pertencentes ao grupo dos cnidários, libertam uma toxina chamada “fisalitoxina”.

As queimaduras causadas pela caravela-portuguesa podem ser muito dolorosas e deixam com frequência cicatrizes DR
As lesões causadas pela caravela-portuguesa podem assemelhar-se às contas de um colar DR
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As queimaduras causadas pela caravela-portuguesa podem ser muito dolorosas e deixam com frequência cicatrizes DR

A picada causada por uma caravela-portuguesa, além de muito dolorosa, pode desencadear sintomas como náusea, vómitos, suor frio, arritmia cardíaca e até a morte. “Além disso, reacções alérgicas ao veneno pode provocar um choque anafiláctico, podendo levar à morte em minutos”, refere um artigo científico, publicado em 2022 na revista científica Environmental Research and Public Health.

O estudo, elaborado por dois cientistas portugueses, debruça-se sobre o que sabemos hoje acerca do diagnóstico e tratamento de picadas causadas por estes seres marinhos. Dado o “aumento do número de casos, sobretudo como consequência das alterações climáticas”, o artigo sublinha a importância de a comunidade científica dedicar maior atenção à questão do veneno de organismos gelatinosos.

O toxicologista forense Ricardo Dinis-Oliveira, co-autor do estudo, juntamente com Sara Almeida Cunha, percebeu durante as férias quão frequente se tornaram os arrojamentos e esta constatação acabou por se tornar um objecto de interesse científico. O cientista faz férias nos Açores desde 2007 e nota que há cada vez mais situações em que é impedido de entrar na praia. Quando há muitos organismos gelatinosos, os nadadores-salvadores içam a bandeira vermelha.

“Enquanto investigador, percebi o aumento crescente dos casos [de contactos humanos com estes animais] e vi um certo empirismo na forma como estas lesões eram tratadas”, explica ao PÚBLICO Ricardo Dinis-Oliveira, investigador da Toxrun, a unidade de investigação do Instituto Universitário de Ciências da Saúde da CESPU (Cooperativa de Ensino Superior Politécnico Universitário). ​

O cientista acredita que este é um dos vários desafios postos pelas alterações climáticas aos cuidados de saúde. E que a melhor resposta será a inclusão de conteúdos relacionados com o clima nos currículos das Faculdades de Medicina e de outros cursos associados à prestação de cuidados. Além de investigador da Toxrun, Dinis-Oliveira é professor da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto.

No fundo, sublinha Ricardo Dinis-Oliveira, trata-se de mudarmos a forma como vemos a saúde: a saúde humana está entrelaçada com a saúde do ambiente e dos animais. Se há uma mudança do clima, os animais são afectados e as pessoas também.

“Há uma só saúde. É muito importante que um profissional que esteja na primeira linha, sejam os médicos dos serviços de urgência ou dos centros de saúde em zonas balneares, sejam os próprios nadadores-salvadores, tenha a formação necessária para diagnosticar e tratar estas lesões”, remata o investigador.