Jornalismo livre para fazer perguntas

Uma “conferência de imprensa” sem perguntas é uma contradição nos termos. Se ela se destina a apresentar alguma coisa aos jornalistas, qual o sentido de impedir que eles perguntem?

Notícias breves:

O diretor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, Luís Carriço, convocou hoje os jornalistas para uma declaração sem direito a perguntas, a propósito do atentado que foi evitado nas instalações da faculdade. (11/2/2022)

O Benfica convocou, a 28 de dezembro, uma conferência de imprensa sem perguntas, onde foi anunciada a demissão do treinador, Jorge Jesus. Apenas o presidente do clube, Rui Costa, e o treinador usaram da palavra e não foram permitidas quaisquer perguntas dos jornalistas. (28/12/2021)

O ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, demitiu-se no dia 3 de dezembro, numa conferência de imprensa que convocou, mas na qual os jornalistas não foram autorizados a fazer qualquer pergunta. (3/12/2021)

O padrão repete-se: “conferências de imprensa” (assim, entre aspas) sem perguntas. Ou, em termos mais genéricos, jornalistas convocados para um encontro em que lhes é apresentada uma qualquer declaração, mas sobre a qual não podem fazer qualquer pergunta.

Uma “conferência de imprensa” sem perguntas é uma contradição nos termos. Se ela se destina a apresentar alguma coisa aos jornalistas, e se estes foram convidados para lá ir, qual o sentido de impedir que eles perguntem? Se o propósito de quem convoca a conferência de imprensa é apenas ler uma declaração ou fazer um anúncio, então que o faça sem jornalistas, mudos e quedos, apenas a assistir e a gravar. Gravar não é a função de um jornalista; é a função de um gravador, ou seja, de uma máquina. Não de uma pessoa, de um profissional. Transformá-lo num mero operador de gravador ou num “pé de microfone” é uma ofensa à sua dignidade, uma falta de respeito pelo seu trabalho. Um trabalho que consiste, precisamente, em perguntar, para saber mais e melhor e, depois, poder contar mais e melhor o que se passou, onde, quando, como, porquê e para quê. O jornalismo não se resume a um gravador – belíssimo auxiliar, mas só isso. O jornalismo começa quando a gravação termina.

Percebe-se bem por que motivo há quem queira fazer uma “conferência de imprensa” sem direito a perguntas. Quem o faz quer que lá vão jornalistas, para que o assunto da “conferência” dê notícia nos jornais, na rádio, na televisão – sobretudo na televisão, pois tem imagem. Quem o faz quer retirar toda a vantagem de ver o seu assunto noticiado nos meios de comunicação, mas simultaneamente não quer assumir o ónus de ter de responder a perguntas sobre esse assunto. Até porque as perguntas, já se sabe, podem ser incómodas, podem levar a conversa para outros domínios, podem desfocar a atenção do público daquilo que é “essencial”… Para que não se corra qualquer risco, transforma-se então a conferência de imprensa numa espécie de “comunicação ao país” ou de “declaração pública”. Para a qual, repete-se, os jornalistas não precisam de fazer nada, a não ser gravar, tomar nota e retransmitir. Triste trabalho para gente qualificada!

Com a panóplia de ferramentas de comunicação hoje ao dispor, designadamente via Internet, já não é necessário convocar conferências de imprensa para dar novidades ou fazer anúncios. Pode bem fazer-se através do site, pode fazer-se via Facebook, Twitter ou Instagram. E por aí chega-se a todo o mundo, a toda a hora. Então porquê insistir em chamar os jornalistas?... Porque uma mensagem difundida nos meios de comunicação tradicionais continua a ter uma chancela de credibilidade que a rede social não tem. E se o anúncio de qualquer novidade sai nos jornais ou na televisão, parece que tem muito mais força do que se tiver sido apenas objeto de uma publicação numa rede social, para mais subscrita por quem é parte interessada na sua publicitação. E lá vem, então, a “conferência de imprensa”. Mas sem o incómodo das perguntas dos jornalistas.

Este expediente que se vai multiplicando entre nós constitui uma falta de respeito não só pelos jornalistas, como também pelo próprio público. Porque é em nome do público que os jornalistas trabalham, é em nome dele que vão à conferência de imprensa e que querem fazer perguntas, para poderem informar bem. Não deixar que eles façam o seu trabalho é prejudicar o direito à informação e trocá-lo por um qualquer direito à publicitação livre e gratuita dos interesses de alguém. É impedir que o jornalismo funcione.

No 4.º Congresso dos Jornalistas Portugueses, em 2017, esta questão foi debatida e levou à aprovação (muito aplaudida) de uma recomendação: que se boicotassem as conferências de imprensa em que os jornalistas não tivessem direito a fazer perguntas. Isso mesmo foi posto em prática poucos dias depois do congresso, pelo Jornal de Barcelos, que decidiu deixar em branco toda uma página anteriormente destinada ao tema que foi objeto de uma conferência de imprensa local, mas onde os jornalistas não foram autorizados a perguntar o que quer que fosse.

Seja como for, não parece que o exemplo tenha dado frutos ou que a recomendação do boicote tenha sido seguida. Desinteresse? Inércia? Conformismo? Esta pode não ser por vezes uma decisão fácil, até porque, para ter real efeito, teria de ser tomada por todos os jornalistas presentes na “conferência de imprensa”: se alguém “furar” o boicote, perde-se tudo. E, infelizmente, já vimos alguns exemplos em que os ditames da concorrência se sobrepõem aos imperativos da solidariedade e das boas práticas.

Por outro lado, o jornalista individualmente considerado nem sempre tem efetiva autonomia para assumir uma decisão destas: ele é um trabalhador por conta de outrem e é parte de uma organização mais vasta, com editores, hierarquias, ordens a cumprir… Não obstante, a bondade desta luta pela dignificação do trabalho jornalístico deveria mobilizar os meios de comunicação social no seu conjunto, as redações, as chefias, as administrações, pois de todas elas é a responsabilidade de defenderem o direito à informação. Sim, o que está aqui em causa é, efetivamente, o direito de todos nós à informação – a uma informação plena, independente, rigorosa, livre, sem manipulações nem silenciamentos.

Nisso mesmo se empenha a plataforma Artigo 37 (https://artigo37.pt/) , uma organização lançada por um conjunto de jornalistas e académicos da área da comunicação, e que se vem dedicando à monitorização e denúncia de todos os casos que signifiquem restrições à liberdade de informação em Portugal. Como, por exemplo, as “conferências de imprensa” sem direito a perguntas…

Joaquim Fidalgo, João Figueira, Pedro Coelho, Fernando Zamith / Artigo37.pt

Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico

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