Para que caia com estrondo

Não há paisagem nenhuma que não seja um espelho e aquela, para a Sãozinha, reflectia alegria.

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Saíram de casa: a Sãozinha como quem nasce e vê a luz, ao mesmo tempo contente e confusa, porque ela, como todas as pessoas habituadas à tristeza, desconfiava das dádivas alegres e das possíveis bonomias do destino. Caminharam os dois, a Sãozinha e o pai, ela ainda a tentar mostrar-se grave, engolir a felicidade, tentando que esta não emergisse desregrada, mas sem o conseguir plenamente. O pai olhou para ela e viu-lhe um esgar no rosto, uma espécie híbrida entre severidade e júbilo.

– Está tudo bem?

A Sãozinha acenou com a cabeça.

O pai deu-lhe a mão, e se passear era incomum, dar as mãos era de uma rareza comovente.

As ruas do costume, lúgubres e cinzentas, pareciam-lhe naquele dia especialmente belas. Não há paisagem nenhuma que não seja um espelho e aquela, para a Sãozinha, reflectia alegria.

Aos poucos, foi perdendo o medo de que tudo não passasse de um equívoco, e foi ganhando confiança, entregando-se ao momento.

Entraram numa leitaria, o pai perguntou à filha se queria alguma coisa, uma arrufada?, senhor Manel, era uma arrufada para a gaiata. Pagou o bolo, meteram-se por uma rua secundária, a Sãozinha sentia que estava a comer alegria, enquanto os pássaros pareciam sublinhar aquela tarde cantando para ela, ou assim pensava, devia ser esse o sentido da natureza, algo que existia para ela, como um cenário para um actor, tudo, desde o princípio dos tempos, fora apenas criado para a iluminar, para que ficasse bem emoldurada. Essa seria uma possível função dos pássaros: criar a banda sonora certa e corroborar a vida. A Sãozinha já não desconfiava do destino, que é precisamente do que o destino mais gosta: que confiem nele, para que possa mostrar o seu lado surpreendente, as conhecidas reviravoltas que lhe atribuem, mas para isso é necessário entrega, ou, dito de outro modo, é necessário que a pessoa se esqueça de que, para atirar alguma coisa ao chão, o melhor é elevá-la primeiro ao céu, para que caia com estrondo.

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Fábrica de criadas é um folhetim criado por Afonso Cruz para o PÚBLICO, a ser publicado de 25 de Abril de 2023 até 25 de Abril de 2024, quando se cumprem 50 anos da Revolução. Os textos são publicados de segunda a sexta. Pode lê-los aqui. Ao sábado há um episódio em podcast, lido pelo autor, com os textos da semana. Um exclusivo para assinantes, que pode ser ouvido em publico.pt/podcasts.

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