Que o mal não entre! As maias que abençoam o maduro mês de Maio

O costume está a perder-se mas a 30 de Abril ainda se põem giestas à porta, para esconjurar o mal. E a 1 de Maio ainda andam “maias” ou “maios” à solta naquele que antigamente era o Dia das Maias.

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Vamos “fazer as maias”? NELSON GARRIDO

Em Vila Nova de Cerveira, organizam-se “As Maias” (de 28 de Abril a 1 de Maio). Não muito longe, em Ponte de Lima, são “Os Maios”. Em Tinalhas (Castelo Branco), a 1 de Maio sai à rua o “Maio Menino” e em Olhão, os maios. E há outros locais no país onde se organizam iniciativas mais ou menos semelhantes — é uma nova forma de fazer continuar uma tradição tão antiga e tão disseminada que é impossível determinar-lhe uma origem única: colocar ramos de giestas (maias) à porta de casa até à meia-noite do dia 30 de Abril para que o “maio”, “carrapato” ou “burro”, que é como quem diz, o mal, não entre.

Em 1958, o etnólogo Ernesto Veiga de Oliveira descreveu “o Primeiro de Maio, que é o Dia das Maias”, como sendo comemorado em todo o país, e “de um modo geral” com esse costume (fossem giestas ou outras flores), ainda que, “nas Beiras interiores e nas províncias do Sul (…), ao lado de outras práticas, que são independentes e talvez de diversa origem, mas de significações convergentes”. “Fazer as maias”, independentemente da forma que tomassem, que era, até há poucas décadas, uma tradição omnipresente em todo o país, como acto privado de protecção e esconjuro, é agora uma excepção. Quem vai “fazer as maias” amanhã à noite?

O amarelo característico que irrompe nas paisagens portuguesas assinalando o final do Inverno este ano até chegou mais cedo do que o habitual, assinala o director do Jardim Botânico do Porto, Paulo Farinha Marques: na primeira metade de Abril, já as giestas, plantas do género Cytisus, que florescem de Norte a Sul de Portugal (embora com especial incidência a norte do rio Tejo), se manifestavam.

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Exposição "Os Maios" em Ponte de Lima, em 2021 CM Ponte de Lima

O habitual é no final de Abril com floração que dura até Junho - e tendo o apogeu em Maio. Será por isso que em algumas regiões as giestas de floração amarela (também as há com floração branca, “associadas a altitude”, comuns nas serras do Marão, Alvão e Estrela) passaram a ser conhecidas por maias, aventa Paulo Farinha Marques - ainda que este seja um vocábulo “a perder força”. Como as tradições a elas associadas.

O que nunca passa é o que a floração das giestas anuncia: a chegada da Primavera, o renascer da natureza depois da sua suspensão invernal. E sendo Maio o apogeu dessa renovação natural, é um momento muito forte da existência, com a sua explosão exuberante de formas e cores. “É um mês muito importante, o auge da fertilidade da natureza”, assinala Paulo Farinha Marques, e “muito rico em termos etnobotânicos”. Daí as giestas estarem também “muito associadas etnograficamente à fertilidade, a arranjar noivo ou noiva”, além do mais comum “afastar o mau-olhado”, daí a tradição de “colocar ramos de maias à porta, sobretudo no Noroeste português”.

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O amarelo característico irrompe nas paisagens portuguesas NELSON GARRIDO

Esta “tradição ancestral” terá “referentes pré-cristãos”, aponta Paulo Farinha Marques, em que “a religiosidade se baseava no que os seres humanos observavam à sua volta”. Era na natureza, portanto, que encontravam elementos para deificar, como plantas e animais, que surgiam revestidos de “sentido mágico e simbólico”. À medida que as religiões se foram sofisticando, as práticas perduraram, embora ganhando outros contornos - o próprio cristianismo as integrou, não de forma inocente, mas numa tentativa de dar outros sentidos (mais “cristãos”) a práticas já muito arreigadas na populações - no caso das maias (versão-vegetal, como veremos), a prática foi associada à narrativa da vida de Cristo.

Nas redes sociais da Sementes de Portugal, João Gomes faz todos os anos publicações sobre o significado das maias e já se apercebeu da sua importância etnobotânica. Sobretudo porque “os comentários aos posts são muito ricos e ajudam a dar outras perspectivas das diferentes práticas em todo o país”. “Nesta matéria, não creio que haja receita a cem por cento”, afirma, “e a forma como as várias regiões se apropriam dela até é interessante”. “A tradição de colher giestas e pendurar os ramos existia sobretudo acima do Tejo”, explica, “e pela pesquisa o mais provável é ser herança da cultura celta, que aí se fez mais sentir. Eles tinham duas estações, o Inverno e o Verão que começava a 1 de Maio”. Já no Alentejo e Algarve, prossegue, as maias envolvem outras tradições, como os bonecos de palha”. Simultaneamente, aponta, o sentido “foi sofrendo apropriações ao longo dos tempos”: foi associada à vida de Cristo, mais recentemente à deusa romana da fertilidade, Maia (a Festa das Maias em Beja, este ano a 13 de Maio, assume-se herdeira desta “tradição”), e Maio é o mês de Maria. “São diferentes nomes, diferentes imagens para celebrar a fertilidade da mãe-terra”, resume.

Uma nova vida

É natural que no próximo dia 1 de Maio “se encontrem portas e portões com maias pendurados em vários pontos do país”, aponta um antropólogo em conversa com a Fugas, “mas em grande parte esta tradição pertence ao passado”. A um passado que ficou documentado no texto “O primeiro de Maio”, de Ernesto Veiga de Oliveira (incluído na obra “Festividades cíclicas em Portugal”): “Não haverá ninguém no país que poderá dizer mais do que aquele texto”, porque “a prática desapareceu”. O país mudou - as raízes rurais são cada vez mais longínquas.

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Coroa de maias em Viana, para esconjurar o mal e manter a tradição CM Viana do Castelo

Na altura em que o etnólogo percorreu o país, encontrou várias práticas que coexistiam com a colocação de giestas ou outras flores (sempre na noite de 30), que, entretanto, já havia sido alargada a “novos” locais como camiões, camionetas, locomotivas, barcos: rapazes vestidos de giestas (os Maios-moços), raparigas adornadas de flores (personificavam as maias), que saíam sempre a 1 de Maio; podia haver peditórios e em algumas regiões o que ele chama de “manjares cerimoniais” - como as castanhas em Trás-os-Montes e Beiras interiores, as “últimas do ano”, ou os “queijinhos de Maio”, no Algarve; em algumas zonas faziam-se “merendas no campo”.

Este foi, por exemplo, um dos costumes apropriados pelo Primeiro de Maio enquanto Dia do Trabalhador, embora também este tenha vindo a desaparecer com os anos. Mas se as tradições das maias se têm vindo a perder enquanto práticas familiares e comunitárias, a verdade é que foram institucionalizadas em alguns locais do país e estão a ganhar certa força como uma espécie de património imaterial.

Assim, entre os dias 28 de Abril e 1 de Maio, em Vila Nova de Cerveira, o centro histórico estará engalanado de coroas de flores; em Vila Praia de Âncora as mesmas datas são da “Vila Praia em Flor” (inclui desfile, mercado de artesanato florido e artes decorativas); em Viana do Castelo, entre 28 de Abril e 28 de Maio haverá “Viana Florida”, que no dia 1 de Maio, no centro histórico, terá exposição de “coroas de Maio” feitas pelas freguesias do concelho; em Ponte de Lima, na mesma altura, a parede frontal da câmara municipal vai receber a exposição Os Maios, que até 20 de Abril já tinha 79 inscritos (um número “superior aos anos anteriores”) e integra coroas de flores, naturais ou não - tudo depende da criatividade dos participantes, que são escolas, lares, juntas de freguesia e, este ano, até os bombeiros locais. Em Tinalhas, no dia 1 de Maio as crianças vão levar o Maio Menino, em traje de giestas, pelas ruas da aldeia entoando ladainhas e esperando receber de volta doces; e em Olhão, ao nascer do dia, a EN125 vai vestir-se de Maios, bonecos de palha adornados de flores.

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Vila Nova de Cerveira dá sempre as boas-vindas a Maio oficialmente com as maias CM VN Cerveira

Actualmente, vários municípios e juntas de freguesia, em parceria com escolas, associações e outras instituições locais, promovem estas práticas para não deixar morrer a tradição e também como forma de atracção turística - mesmo os concursos florais em Maio ou os “Maio floridos” anunciados nas agendas de tantos municípios não são mais do que novas formas de viver essa prática remota. Agora institucionalizada para continuar a viver.

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