A coreografia da infância

“quando cair no chão e rebolar é, não uma derrota, mas a uma maneira de rir com o corpo todo.”

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Introdução

Conheci o Virgílio na Feira do Livro de Lisboa. Muitas vezes levava uma pilha de livros meus, para ele e para oferecer, pedindo que os assinasse. Ocasionalmente, trazia consigo um presente, reflectindo duas das suas paixões, o violoncelo e a porcelana. Quando publiquei o livro intitulado Capital – uma narrativa silenciosa em que o protagonista tem um porquinho mealheiro que cresce com ele, como um animal de estimação –, levou-me um peça de porcelana: um porquinho mealheiro. Tenho também alguns discos de violoncelistas graças à generosidade do Virgílio.

Um dia, igualmente na Feira do Livro de Lisboa, disse-me que me queria contar uma história que alguém tinha partilhado com ele. Essa pessoa – não interessam as circunstâncias – trabalhava na secretaria de um hospital e, certo dia, quase como um desabafo, contou-lhe alguns episódios de infância, ambientados num antigo lazareto que se tornou depois um espaço de acolhimento "para crianças desfavorecidas". Eram memórias pungentes, duras, sendo uma delas profundamente bela na sua tragédia. Mais tarde, o Virgílio organizou um almoço em sua casa para que eu as ouvisse contadas pela pessoa que as viveu. Esta história, romanceada, parte precisamente do testemunho que tive o privilégio de ouvir nesse dia.

Uma tinha seis, a outra, dez. O pai olhava para as filhas, que não reparavam na sua presença enquanto corriam pela casa, a mais velha a tentar apanhar a mais nova, por entre os gritos, as quedas e o corrupiar dos corpos esguios e ternos, ainda intocados pelos dias tristes que a maturidade traria como cenário quotidiano, pela desonra da maldade arquitectada e das inevitáveis decepções que sofremos e fazemos sofrer. Esses corpos ternos dançavam a coreografia espontânea da infância, a dança mais inocente de todas, em que as palavras se reduzem aos gritos agudos da euforia e quando cair no chão e rebolar é, não uma derrota, mas a uma maneira de rir com o corpo todo. O pai olhava para as filhas: iria escolher uma delas.

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Fábrica de criadas é um folhetim criado por Afonso Cruz para o PÚBLICO, a ser publicado de 25 de Abril de 2023 até 25 de Abril de 2024, quando se cumprem 50 anos da Revolução. Os textos são publicados de segunda a sexta. Pode lê-los aqui. Ao sábado há um episódio em podcast, lido pelo autor, com os textos da semana. Um exclusivo para assinantes, que pode ser ouvido em publico.pt/podcasts.

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