Desvelar a música secreta de Vicente Lusitano

O agrupamento Arte Mínima, que se dedica ao repertório renascentista, está a desbravar a pouco conhecida produção daquele que terá sido o primeiro compositor pardo da história.

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Pedro Sousa Silva é o mentor do projecto, ancorado num laboratório de música do século XVI da Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo do Porto DR

Por estes dias, o Arte Mínima – agrupamento de música renascentista fundado em 2011 por Pedro Sousa Silva – trouxe a público uma parte de A música secreta de Vicente Lusitano, projecto que consiste no estudo e interpretação dos motetes a cinco partes daquele compositor nascido em Olivença (supõe-se que por volta de 1520), e que chega a público sob a forma de cinco concertos, culminando na gravação integral dos referidos motetes.

Embora até há muito pouco tempo a sua música tenha permanecido praticamente desconhecida, Vicente Lusitano foi um notável teórico e compositor “pardo” (filho de pai branco e de mãe negra, é o primeiro compositor negro de que há registo), que fez carreira em Roma e que acabou por se converter ao protestantismo, perdendo-se o seu rasto na Alemanha do século XVI.

Na passada sexta-feira, a Igreja Matriz de Caminha acolheu um desses concertos “íntimos” em que, além da música, se oferece um enquadramento da mesma. Para quem esteja acostumado a polifonia renascentista, um concerto com apenas quatro motetes a rondar os sete minutos de duração saberá a pouco. Porém, a forma como este projecto procura dar-se a conhecer assim o impõe: levar a música para fora dos grandes centros, dá-la a escutar e conversar sobre ela com o público, tornando-a mais acessível. É Pedro Sousa Silva quem o explica, após a interpretação do primeiro motete, Hodie Simon Petrus. No fundo, trata-se de inteligentemente servir o sublime em pequenas doses para que, em vez de o enfadar, se deixe no ouvinte a necessidade de mais.

Trata-se de um projecto de música antiga, mas a postura dos músicos está bem focada no nosso tempo. Não há programa impresso: há um código QR à entrada da igreja que permite aceder ao sítio electrónico do projecto, onde, além do texto de cada um dos motetes, se encontra alguma informação (incluindo uma detalhada declaração de princípios sobre a pegada ecológica da preparação e da apresentação dos concertos).

Nascido dum laboratório de música do século XVI da Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo do Instituto Politécnico do Porto, onde Pedro Sousa Silva ensina e a maioria dos restantes elementos do grupo estudou, este projecto de estudo e interpretação dos motetes a cinco partes de Vicente Lusitano apresenta-se com um cantor e um flautista por parte, colocados frente a frente, e todos dispostos em círculo para o interior do qual estão voltados. Os músicos do Arte Mínima não são os primeiros a apresentar-se com esta disposição, que não exclui o público, mas antes desperta neste a emoção de experimentar uma nova relação com a escuta.

Nos restantes motetes – Vidi civitatem, Sancta Mater e Videns crucem Andreas, todos antecedidos de algumas palavras de enquadramento – ligeiros deslizes nas vozes de soprano e de uma das partes de tenor não foram mácula suficiente para retirar ao concerto a aura de um belíssimo momento de fruição.

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A música de Vicente Lusitano está a ser estudada e redescoberta pelo agrupamento Arte Mínima DR

O público presente, disposto em quadrado em torno dos músicos, aplaudiu entusiasticamente, sendo brindado uma vez mais com Hodie Simon Petrus.

No dia seguinte, sábado, outros quatro motetes foram apresentados no Mosteiro de São Martinho de Tibães, em parceria com a Direcção Regional de Cultura do Norte.

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