Cabeça de mulher, corpo de leão

O problema da ficção são as mensagens telefónicas que os autores recebem de amigos a certificarem-se se está tudo bem porque leram um qualquer texto em que a ficção parece afirmar a sua autobiografia

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O problema da ficção Pexels

O problema da ficção, quando calha ser verosímil, é que continua a perturbar os leitores e as leitoras mais do que uma notícia polémica num qualquer folhetim de renome. Tantos séculos de histórias inventadas e ainda não acreditam que a ficção mente com todos os dedos das mãos.

O problema da ficção, quando calha embarcarem nas frases escritas, é fazer com que quem lê deite os olhos à história como quem tem fome e apenas vigia o lume. "Deitar um olhinho à sopa" pode bem ser uma forma de acabar zarolho como o Camões, mas sem obra que lhe valha.

O problema da ficção é que já não tem vigor. O escritor brasileiro Julián Fuks diz que chegou tarde demais à ficção, no momento em que esta já tinha envelhecido. Estamos nessa era da ficção aposentada, no tempo da ficção velha e cansada. É por isso que as leitoras e os leitores se encontram sedentos de acreditar em tudo, a mentira descarada pouco ou nada lhes interessa, só acreditam na ficção se cheirar a "jura que é verdade!", como as crianças imperativas no recreio da escola, obrigadas a experimentar a desconfiança perante uma mentira evidente.

O problema da ficção são as mensagens telefónicas que os autores e autoras recebem de amigos e amigas a certificarem-se se está tudo bem porque leram um qualquer texto em que a ficção parece afirmar a sua autobiografia. Andam sempre à procura da verdade quando esta só existe quando é claramente mentira.

Culpemos Fernando Pessoa por ter escrito o poema Autopsicografia e os versos em que descreve o fingimento indispensável do poeta: "O poeta é um fingidor / Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente." Culpemos Pessoa pela ousadia de ser confessado sincero através dos seus fingimentos. O problema da ficção é que quanto mais se finge, mais a esfinge se torna real: cabeça de mulher, corpo de leão. O problema da ficção é que continua a ser uma demonstração de poder. Uma antiquíssima demonstração de poder. Como escrever uma ficção nova? Como escrever ficção hoje?

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