Arrábida: a Secil de novo a atirar cimento à parede

E se a Secil fechasse de imediato a extração e a fábrica e se dedicasse tão-só, nas próximas dezenas de anos, a minimizar todos os impactos negativos causados até agora?

Quem como eu não perdia a série televisiva Conan – o Rapaz do Futuro, de Hayao Miyazaki, aos sábados de manhã da RTP dos anos 80 do século passado, lembrar-se-á da cidade de nome “Industria”, por onde passava a narrativa. Um cenário pós-apocalíptico de que sempre me recordo quando passo no Outão, vindo de Setúbal para a serra da Arrábida. Trata-se de uma fábrica de cimento em plena laboração e não de qualquer vestígio de arqueologia industrial de um passado recente, ainda não completamente desmantelado.

A Secil – Companhia Geral de Cal e Cimento, S.A. pretende agora expandir em 18,5 hectares de área natural a sua área de extração das pedreiras que laboram há mais de 60 anos, contíguas à fábrica, e que desde 1976 se encontram em pleno Parque Natural da Arrábida (PNA). Como sabe que só o poderá fazer com a alteração do Plano do PNA, do Plano Diretor Municipal e do Plano de Gestão da Zona Especial de Conservação Arrábida-Espichel, tenta justificar em mais de 800 páginas de puro delírio que as suas pretensões são globalmente benéficas para a proteção dos valores que aqueles instrumentos de gestão territorial pretendem defender.

Se já era penoso conviver com os direitos adquiridos de uma indústria extrativa a céu aberto numa área de valores naturais extremamente relevantes, tão-só porque como coletivo não temos dinheiro para a indemnizar e parar de uma vez por todas com a sua atividade, é ainda pior assistir a estas tentativas de perpetuação de atividade económica em tudo incompatível com os valores naturais que nos comprometemos a preservar.

A título de exemplo pode ler-se “… é também firme intenção da Secil de, num futuro próximo (…), libertar da exploração uma área com cerca de 35,8 hectares, por se encontrar recuperada, integrada ambiental e paisagisticamente…”, ou seja, a Secil pretende “dar em troca” uma parte “recuperada” da sua exploração, o que é já sua obrigação contatual, como se estivesse a fazer um favor a alguém. Acresce que a parte “recuperada” não é nem nunca virá alguma vez a ser equivalente à parte natural a explorar, nem em termos de coberto vegetal, nem em termos de serviços dos ecossistemas prestados. Para sempre teremos uma vista de uma serra cortada em enormes taludes, que a vegetação, por muito frondosa que seja, não poderá esconder.

O que não coube naquelas páginas foi a resposta às perguntas: “E se a Secil fechasse de imediato a extração e a fábrica e se dedicasse tão-só, nas próximas dezenas de anos, a minimizar todos os impactos negativos causados até agora?”, “quantos empregos diretos e indiretos iria proporcionar à região?”, ou ainda “quantas outras atividades económicas sustentáveis iriam usufruir do restauro possível dos ecossistemas e serviços por estes prestados?” Não vi. Talvez me tenha passado. Mas é tanta coisa…

Portugal comprometeu-se com a comunidade internacional a proteger 30% da sua superfície terrestre e marinha até 2030. O PNA integra a rede natura 2000, é reserva biogenética e em 2013 foi preparada uma candidatura a património natural da UNESCO. Um dos argumentos do parecer negativo dos peritos que fez cair a candidatura foi justamente a atividade extrativa em laboração.

Em 2020, o então ministro do Ambiente e da Ação Climática, João Pedro Matos Fernandes, disse, taxativamente, sobre a ampliação da pedreira da Secil: “Claro que isto nunca irá acontecer enquanto eu for ministro.” Qual célula operacional adormecida, a Secil voltou para o seu covil, à espera de melhores tempos para voltar a tentar atirar cimento à parede, para ver se cola. Mais cedo do que tarde, aí está um novo titular da pasta. E agora, dr. Duarte Cordeiro?

O que temos de decidir coletivamente é que usos daremos ao território e quais destes usos são incompatíveis entre si, optando sempre pelos que protegem um bem comum mais alargado. Neste caso não tenho muitas dúvidas.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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