Os protestos incendiaram Paris, mas a vida continua

A mobilização contra a reforma das pensões em França levou 3,5 milhões de manifestantes às ruas, de acordo com a CGT (1,08 de acordo com a polícia). Em Paris, a noite trouxe focos de violência.

paris,protestos,mundo,franca,
Fotogaleria
A Place de la République repleta de manifestantes na quinta-feira DR
paris,protestos,mundo,franca,
Fotogaleria
Cordão policial na praça, à noite, já depois da desmobilização dos manifestantes DR

Formigueiro na garganta, ardor nas narinas e nos olhos, com lágrimas a teimarem despontar. Mesmo protegidos pelas janelas de uma esplanada da central Place de la République, o lançamento de gás lacrimogéneo, para desmobilizar os manifestantes que se tinham concentrado na Boulevard Voltaire, pelas 20h30, apanhou-nos desprevenidos.

Não terão passado dois minutos entre uma caravana de motos com gendarmes chegar de rompante, os agentes posicionarem-se, lançarem o gás, recuarem e partirem. E ainda estávamos a tentar perceber o que acabara de acontecer quando começámos a sentir os sintomas. Atrás de si, os gendarmes deixaram a rua vazia, com os manifestantes, que antes lançavam petardos, a dispersarem.

No centro da praça, vêem-se chamas — é apenas um dos fogos de 903 ateados em estruturas urbanas, sobretudo caixotes do lixo, segundo as declarações do ministro do Interior, Gérald Darmanin, à CNews.

i-video
Incêndio na câmara de Bordéus marca mais uma noite de protestos Imagem: Reuters. Edição: Joana Gonçalves

Caravanas de carros e de carrinhas da polícia passam a todo o instante: ora em direcção à Av. de la République, ora seguindo para a Boulevard du Temple, ambas no lado Sudeste da praça.

Os manifestantes, a esta hora na maioria jovens (e muitos visivelmente alcoolizados), vão gritando palavras de ordem junto dos gendarmes fortemente armados. Polícia e bombeiros continuam a cruzar a praça incessantemente — já não sabemos se são outros ou os mesmos que andam às voltas sem parar.

Enquanto isso, uma mulher atravessa-se de bicicleta, levando atrás duas crianças. Homens e mulheres passam de trotinete e de bicicleta. O corrupio de carros continua, mesmo que alguns tenham de parar para desviar as grades que a polícia tira e um qualquer manifestante volta a pôr, atrapalhando a fluidez do trânsito. Alguns jovens fazem malabarismos em skate, enquanto um sem-abrigo já desistiu de dormir e vai apreciando o “espectáculo”.

Há uma alienação nos parisienses que se cruzam com os protestos, sem que deles façam parte, que impressiona. É apenas mais um dia na cidade, mais uma viagem da escola ou do trabalho para casa. Têm um encontro marcado ou têm que ainda passar num qualquer minimercado de horário esticado para comprar qualquer coisa que se esqueceram. Passam rente aos gendarmes, agora em formação junto à entrada da Rue du Faubourg du Temple, no lado Nordeste da La République, e a tentarem perceber o que os gritos que lhes chegam poderão representar. Algumas garrafas voam em direcção aos agentes, sem que, porém, lhes cheguem sequer perto.

A polícia fica em alerta, mas não carrega. Prefere manter posição, mesmo que isso implique “aturar” a bebedeira de um homem que quer a toda a força conversar com os gendarmes. As palavras não devem ser ofensivas: a maioria não reage, mas a alguns arranca um ou dois sorrisos.

Entre o cordão policial e os manifestantes que gritam “às armas”, a vida continua. Dois rapazes e uma rapariga que se encontram ao nosso lado, entre o centro da praça e o cordão, debatem se o melhor é ficarem por aqui ou juntarem-se “à festa” dos protestos mais à frente. Acabam por rumar ao encontro do ajuntamento, atravessando o cordão, em passo apressado e com palavras de ordem.

No centro da praça, um rapaz é interpelado pela polícia que ordena aos mirones que se ponham a “circular”. No entanto, os gritos incentivados por uma mulher nos seus 50 anos (“libertem o camarada”) acabam por soar mais alto. O jovem é deixado ir e os ânimos acalmam. Outros não tiveram tanta sorte: por toda a França, foram efectuadas 457 detenções, com as autoridades a informarem que 441 agentes da polícia e gendarmes foram feridos.

A violência da noite, aparentemente desorganizada, mas cuja proliferação de focos faz crer que não seja orgânica, já tinha começado durante a tarde na Place de l'Opéra, à medida que a marcha se ia ali concentrando.

Durante o percurso, porém, a ordem parecia instalada. Na corrente, seguiam trabalhadores de diversas empresas privadas, funcionários públicos, advogados, numa mancha de gente de todas as formas e idades – bebés de colo cruzam-se com quem já está na reforma, mas continua a querer contribuir para o protesto.

Há petardos que assustam os mais incautos, mas sobretudo muita música. E quando chegam os bombeiros, precedidos pelo ti-no-ni de uma mini-ambulância e a pintarem o ar de vermelho, quem assiste dos passeios aplaude, numa emocionante homenagem (seria também a chegada dos soldados da paz à Place de l'Opéra que acalmaria os ânimos, escrevia ontem o Le Monde).

Paris amanheceu, entretanto, calma e fria, e com o sol a espreitar. As paralisações continuam, no entanto, a afectar a vida (o nosso primeiro voo, por exemplo, foi cancelado; é torcer para que a alternativa mais logo não sofra contratempos). E os franceses prometem continuar a luta: tanto nas manifestações ordenadas, como nos protestos marginais. Ao longo do fim-de-semana, estão previstos comícios sindicais locais e os sindicatos anunciaram um décimo dia de greves e manifestações no dia 28 de Março.

Sugerir correcção
Ler 7 comentários