Mulher, negra e de direita

Que modelo de direita liberal responde a milhares de não elegíveis como Miss ou Mister Self Made Person, a quem o elevador social barra qualquer acesso que não seja ao -1?

Assinalava o mundo o Dia Internacional da Mulher quando, no Tribunal Constitucional, em Lisboa, com 7600 assinaturas, tinha início a formalização de um novo partido político, o Nova Direita.

Sem qualquer constrangimento, Ossanda Liber, uma cidadã que se apresenta como luso-angolana – é filha de um reputado médico angolano falecido recentemente que se destacou por ter assumido durante vários anos a direção da Clínica Girassol, propriedade da Sonangol, em Luanda e luso-francesa – nacionalidade que adquiriu por via do matrimónio –, respondia assim à possibilidade de coligações com o partido de extrema-direita Chega: “Se os portugueses assim o desejarem, sim”.

No seu percurso político encabeçou em 2021 a lista do movimento cívico “Somos Todos Lisboa” às eleições autárquicas, não tendo elegido nenhum deputado municipal, para, de seguida, se filiar no também de direita Aliança, partido fundado por Pedro Santana Lopes.

Primeira mulher negra a liderar um partido de direita em Portugal, afirma no manifesto que apresenta que “o interesse coletivo sobrepõe-se às querelas políticas”, como se a reunião de 7600 assinaturas para a formalização do Nova Direita não significasse, por si só, um ato político.

Se Ossanda Liber marcou presença na marcha do Dia Internacional da Mulher organizada pelo Movimento 8 de Março em conjunto com a Greve Feminista, tenho dúvidas; se se fez presente na marcha organizada pelo Movimento Democrático de Mulheres, mais improvável me parece. Mas que fez questão de usar o 8 de março, para colocar na sua agenda que era ela a nova chave a abrir a porta da direita a imigrantes e emigrantes, lá isso fez.

A questão que me leva a este artigo é a de até que ponto faz sentido uma mulher negra apresentar à comunidade radicada em Portugal originária ou com origens nos países africanos lusofalantes uma proposta política de direita como resposta aos problemas e expectativas desta permanentemente olvidada comunidade.

No passado dia 25 de fevereiro pude testemunhar, durante a marcha do movimento Vida Justa, a quantidade de associações e coletivos que, caminhando das margens para o centro, reivindicaram direitos tão elementares como o direito ao trabalho ou o direito à habitação, reivindicações que têm mais de três décadas.

É que em 2023 assinalam-se exatamente 30 anos do Decreto-Lei 163/93 de 7 de maio que estabeleceu o PER – Plano Especial de Realojamento, o qual surgiu após a Presidência Aberta de Mário Soares em que o mesmo confrontou o então chefe do Governo, Aníbal Cavaco Silva, com a emergência social e humanitária que se vivia em milhares de bairros de construção ilegal, hoje, por imposição do politicamente correto, denominados bairros de autoconstrução.

O PER assumia-se como sendo o primeiro programa de habitação pós-Estado Novo, colocando a um canto as antigas Operações Sal. Assumindo-se como resposta a um problema habitacional, o tempo veio a provar não o ter sido, ou não fosse a crise na habitação tema predominante da atual agenda política.

Facto é que em 2023 a comunidade afrodescendente continua a braços com os mesmíssimos problemas que em 1993, sem que aparentemente algo tenha mudado; isto já para não viajar mais longe na história, até àquele ano de 1444, em Lagos, em que, como o descreveria o cronista do Reino de Portugal Gomes Eanes Zurara, sob ordem do Infante Dom Henrique, assistiu-se ao primeiro grande desembarque de escravos africanos.

E com isto a pergunta: como pode um partido ideologicamente de direita colmatar a invisibilidade de comunidades com as quais, e no seu ideário, o Estado não prioriza o estabelecimento do Contrato Social? Que modelo de direita liberal responde a milhares de não elegíveis como Miss ou Mister Self Made Person, a quem o elevador social barra qualquer acesso que não seja ao -1? E não, não me refiro ao acesso às garagens, é mesmo à restrita circulação na cave.

Ao Nova Direita e à sua líder falta-lhes perceber que o pai do liberalismo, John Locke, era um britânico preocupado em encontrar justificação ideológica para a colonização das Américas, para a tomada e capitalização das terras até então pertencentes a pequenos agricultores, encontrar justificação legal para o direito ao porte de arma, enfim, com uma estratégia de economia de mercado que nunca acudiu os mais desfavorecidos, antes legitimou a força, a ocupação, a colonização e o capitalismo.

Será que é de uma mulher negra na liderança de mais uma velha Nova Direita que as comunidades confinadas a lugares de margem precisam?

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