Francisco Esteves, a caneja de infundice e outras receitas da gastronomia jagoz

Há mais de duas décadas que Francisco Esteves preserva o receituário e tradições da gastronomia de raiz marítima da Ericeira. “A canêja era obrigatória!”, embora já não se encontre nestas águas.

FRANCISCO ESTEVES
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“Um ícone da gastronomia jagoz”, explica Francisco Esteves ADRIANO MIRANDA
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A caneja já não se encontra nas águas da Ericeira, vem sobretudo da Mauritânia e Açores dr
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A caneja continua a ser parte da identidade gastronómica da Ericeira dr

Prato simples, com cheiro levemente amoniacal, mas de sabor intenso e textura macia, a caneja de infundice poderia até comparar-se a uma normal pescada cozida. Postas a destacar o raiado das lascas de carnes brancas do pescado, que são cozinhadas com pele e se servem com batatas cozidas e um bom fio de azeite. A grande diferença está, no entanto, na forma como o peixe é preparado. Ou seja, a infundice, termo que os dicionários explicam designar uma barrela com base em urina que era utilizada para facilitar a lavagem de roupas muito sujas.

Ora, é mesmo essa a característica distintiva, o forte odor amoniacal, que resulta da cura do peixe que está na origem desta receita única dos pescadores da Ericeira. “Um ícone da gastronomia jagoz”, como explica Francisco Esteves no livro que acaba de publicar, onde recolhe toda a informação, história, testemunhos e documentos, não só sobre a receita e modo de preparação como também sobre as especificidades da caneja, o peixe que está na sua base.

Jagoz de gema, como se designam os naturais da Ericeira, o autor faz questão de usar também a grafia tradicional — canêja, com acento circunflexo — respeitando a tradição oral dos pescadores locais. E é, precisamente, a riqueza e a longa história das tradições locais ligadas às actividades marítimas que o motivam. “O importante é voltar a pôr a Ericeira no mapa”, frisa o homem com formação e actividade profissional na área da Física mas apaixonado pelas origens, que tem já preparada uma nova publicação dedicada ao receituário e à cultura marítima jagoz.

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"É um prato único e diferente de tudo e marcante na identidade local" DR

“Tenho todo o receituário sobre caldeiradas e preparação de mariscos, com testemunhos e documentos que tenho recolhido desde que me reformei. Foi com a ideia da publicação de um livro que em 2001 que iniciei os inquéritos sobre a gastronomia jagoz.” Pelo caminho, publicou já quatro obras relacionadas com as actividades do porto da Ericeira, e um quinto, o mais recente, dedicado ao pão de Mafra.

“Foi no meio desses inquéritos e pesquisas que apanhei tudo sobre a canêja de infundice. Era obrigatório, é um prato único e diferente de tudo e marcante na identidade local”, vinca Francisco Esteves, que logo no início do livro explica: “Com este trabalho pretendo acabar de vez com os mitos e especulações que têm vindo a inquinar a história recente da Canêja de Infundice, lenda icónica da gastronomia jagoz e um dos alter ego da identidade ericeirense.”

Quanto às receitas, explica-nos que são basicamente idênticas, com pequenas variantes que não alteram a identidade. Caneja é o nome adoptado pelos pescadores da Ericeira para o cação liso, uma variedade de tubarão que é pescado nos primeiros tempos de vida. Cortado em postas mas com o cuidado de não as separar por completo isolam-se com um pano, embrulham-se em papel e depois ainda em plástico para completo isolamento.

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A caneja de infundice poderia até comparar-se a uma normal pescada cozida DR

O bicharoco é depois colocado em lugar fresco e escuro a tradição era enterrar para um processo de cura anaeróbico, sem contacto com o ar, durante pelo menos oito dias. Tempo em que se desenvolve a infundice, os tais odores amoniacais que resultam das específicas características orgânicas dos peixes da família dos tubarões, como ciosa e aprofundadamente é explicado no livro.

Francisco Esteves destaca que este é um método de cura único no mundo, e que só tem comparação com outros dois processos de “curas estranhas e exóticas de elasmobrânquios”, a família de peixes que engloba os tubarões. Um deles é “o famoso hákarl islandês, preparado a partir do tubarão da Gronelândia”, cuja carne é venenosa, “devido à alta concentração de óxido de trimetilamina”, sendo sujeita a um processo de cura para poder ser consumida.

O outro é o hongeohoe sul-coreano, uma iguaria feita de raia fermentada com um processo de cura que é conhecido dos pescadores coreanos desde o século XIV, quando descobriram que a raia malhada era o único peixe que podia ser transportado a grandes distâncias ou armazenado por longos períodos de tempo sem apodrecer, mesmo na ausência de sal.

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A caneja dr

Nos três casos, explica o autor, “o peixe depois de fermentado cheira intensamente a amoníaco, consequência de todos os elasmobrânquios possuírem ureia no sangue e na carne que se degrada após a morte em compostos de amoníaco” que ajudam à conservação do peixe.

Na Ericeira, a tradição é que as postas sejam cozidas com pele e acompanhadas por batatas, igualmente cozidas com a pele, tudo regado com um bom azeite. Francisco Esteves conta que os pescadores acompanhavam cada garfada com um gole de vinho tinto, ácido e encorpado. É que graças ao forte teor alcalino do peixe, qualquer vinho é amaciado, tornando o seu paladar adamado.

Apesar das associações pouco agradáveis que a imaginação pode associar, o autor regista com agrado um renovado interesse pela tradição da infundice e consequente revitalização da receita, “fruto do interesse pelas tradições e da procura dos turistas”. Isto apesar de a caneja já não se encontrar nas águas da Ericeira, vindo sobretudo da Mauritânia, mas também dos Açores.

No livro regista mesmo dois restaurantes que oferecem a possibilidade de degustar a infundice a pedido e por encomenda: Casa de Pasto Farol (Luís Silva - 966 350 285) e o Restaurante Sul (Paulo Rodrigues – 966 212 519). É claro que as encomendas têm que ser feitas pelo menos com oito dias de antecedência.

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