A vida de um futuro ex-professor

O Ministério da Educação promete vincular mais de 10.000 professores. Coisa boa esta, parece logo à partida. Contudo, como se sabe, o diabo está nos pormenores. E que pormenores estes!

Muita tinta já correu por conta dos professores. Muitas manifestações, muitas greves, muita revolta e insatisfação. As manchetes com que nos deparámos nas últimas semanas, felizmente, não deixam que isso passe despercebido. Muitas notícias, reportagens, entrevistas, conferências de imprensa. Muitas verdades e muitas mentiras foram noticiadas, como é normal. Muita informação e, convenientemente, muita desinformação também. Creio que não haverá hoje um português que não saiba que queremos a recuperação do tempo de serviço roubado, o fim das cotas nos escalões que as têm, um aumento de salário e respeito.

Estas coisas todos sabem que queremos, mas não as dão. Sabem também que queremos deixar de andar com a casa às costas, o que acontece há tanto tempo que já se considera normal um professor ter que fazer centenas de quilómetros por semana para poder trabalhar. Esta informação, todos conhecem.

Mas depois vem a desinformação: o Ministério da Educação, pela pessoa do senhor ministro da Educação, assim como pelo próprio primeiro-ministro – com toda a confiança que um político profissional consegue transmitir em qualquer frase que emita –​ tenta convencer-nos de que vai acabar com isso, vinculando mais de 10.000 professores. Coisa boa esta, parece logo à partida. Contudo, como se sabe, o diabo está nos pormenores. E que pormenores estes!

Para facilitar o entendimento, passo a explicar como é que esta medida, apregoada como positiva, se transforma imediatamente numa medida que me levará a abandonar o ensino:

- Sou professor há 19 anos. Nessa altura, o único local em que consegui emprego foi a 250 quilómetros de casa. E assim abandonei a minha querida terra, onde estavam os amigos de sempre, a família, as atividades, a vida. Não me queixei.

- A minha esposa, que padece da mesma "doença" (também é professora), veio também para perto de mim, seis meses após o nascimento da nossa filha mais velha. Entre horários de seis horas, oito e, por vezes, com muita sorte, de 14 horas, lá foi arranjando colocação num raio de 50 km.

- Este ano, graças à tal vinculação dinâmica (para que o Governo cumpra a mesma obrigação que impõe aos privados), eu e a minha esposa estamos em condições de vincular. Seria um passo importantíssimo para, aos 46 anos, ter alguma estabilidade laboral.

- De acordo com as regras desta vinculação, no próximo ano letivo (2023-2024) eu ficarei a dar aulas num raio de cerca de 80 km de casa, e ela num raio de 30 km, tendo em conta os nossos locais de trabalho atuais. Menos mal, não é?

- As mesmas regras obrigam a que, em 2024, ambos tenhamos de concorrer ao país todo. Sim, da ponta norte à ponta sul, entre Espanha e o atlântico. Um ano de sacrifício?

- Para finalizar em beleza, quando vincularmos nesse ano (ano letivo 2024-2025), onde quer que seja (estou a apontar para Lisboa e Algarve), temos de ficar lá! Um ano? Dois anos? NÃO: SEMPRE! Sim, isso mesmo, sempre.

- Traduzindo para miúdos: eu vinculo, por exemplo, em Lisboa e ela no Algarve. Aí ficaremos definitivamente.

Pergunto:

Como pago três casas (a minha, em Leiria, uma em Lisboa e uma no Algarve)?

Quando vejo a minha mulher? Divórcio?...

E às minhas filhas, de 15 e 13 anos, o que lhes faço? Passam uma semana em Lisboa e outra no Algarve, alternadamente? Mudo-as de escola? Para onde?

Como é que podem obrigar as pessoas a isto? Em que mente doentia nasce uma ideia destas? É sério? É honesto? É justo? É são?

Querem obrigar-me a escolher entre a minha profissão e a minha família!

Eu respondo: é uma não-questão. Se alguém, na zona de Leiria, quiser dar emprego a um tipo de 46 anos, que foi professor durante vinte anos, por favor, apresente-se...

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

Sugerir correcção
Ler 5 comentários