Quem tem medo de uma política externa feminista?

Em matéria de representação e participação, nomeadamente em cargos públicos e em áreas tradicionalmente masculinas, os avanços ficam aquém das expectativas.

Hoje, dia 8 de março, a comunidade internacional tira proveito deste marco pertinente para fazer um balanço dos direitos humanos e do estatuto das mulheres. António Guterres foi o primeiro a fazê-lo: à velocidade actual, a igualdade de género estará a 300 anos de distância, alertou o secretário-geral das Nações Unidas em plena Comissão sobre o Estatuto da Mulher (CSW). Se o trabalho que temos feito é reconhecidamente lento e ineficaz, e se estamos genuinamente convictos da importância da igualdade, não precisaremos então de mais coragem, ambição e representação política no sentido de fortalecer os direitos das mulheres?

Seria de esperar que na reta final dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, e na terceira década da Agenda Mulheres, Paz e Segurança, os governos sentissem uma pressão acrescida na questão da igualdade de género. E embora se verifique progresso onde a proteção e a vitimização das mulheres é uma realidade, a verdade é que em matéria de representação e participação, nomeadamente em cargos públicos e em áreas tradicionalmente masculinas, os avanços ficam aquém das expectativas. Por exemplo, as mulheres representam pouco mais de 13% das Forças Armadas portuguesas, ainda que a sua plena participação tenha não só um cariz normativo e de princípio, mas também um valor estratégico e de eficácia operacional bem reconhecidos.

A notoriedade do papel das mulheres na paz e segurança internacional tem sido, em certa medida, o resultado da pressão de compromissos multilaterais robustos, mas também de uma consciencialização de que a desigualdade é um factor limitativo para políticas públicas eficazes. Assim, neste Dia Internacional da Mulher proponho ao meu país um exercício conjunto: não será tempo de repensarmos e reconstruirmos as estruturas que informam a ação externa do Estado, de forma a afirmar os princípios da igualdade, diversidade e resiliência?

Como resposta a exercícios semelhantes em países como a Suécia, Espanha e Canadá, o conceito de Política Externa Feminista surgiu na última década como último reduto da aceleração da igualdade de género. Esta deve reger-se por novos princípios, entre os quais o aumento da representação das mulheres e a promoção da igualdade de género, de modo transversal em todos os setores da política externa (defesa, diplomacia, segurança, comércio, ajuda humanitária, etc.). A Política Externa Feminista tem de “radical” apenas a crença de que temos direito a usufruir de um mundo menos desigual e mais sustentável, e de “perigosa” não lhe identifico atributos para além da afronta veemente a países onde as mulheres são cidadãs de segunda classe.

Enquanto bom aluno nos palcos bilateral e multilateral, Portugal reúne à partida todas as condições para esta transformação. Usufruímos também de um momento político nacional oportuno enquanto tivermos um ministro dos Negócios Estrangeiros e uma ministra da Defesa Nacional altamente sensíveis e conhecedores desta matéria. O primeiro passo para a adoção de uma nova política externa, assumidamente feminista na teoria e na prática, poderá passar pela identificação dos princípios, recursos e objectivos que Portugal quer promover na sua ação externa, e sempre através de uma matriz que promova a igualdade de género, a participação das mulheres, a proteção dos direitos humanos e a promoção da paz e segurança internacional.

Ainda assim, antevejo no caso português três grandes desafios e obstáculos face a este exercício:

  • Primeiramente, a resistência cultural e as raízes da diplomacia tradicional nos nossos negócios estrangeiros poderão dificultar uma reflexão profunda sobre a igualdade enquanto princípio, meio e fim para uma política externa diferente;
  • Em segundo lugar, a falta de dados e estudos impede que se pensem soluções práticas para problemas antigos, nomeadamente a desigualdade de género numa carreira onde as mulheres são 30% do total dos nossos diplomatas, mas menos de 12% são embaixadoras;
  • Por último, o treino dos nossos quadros públicos relativamente à adoção da perspetiva de género de forma transversal e à priori, e não apenas durante ou após a implementação de políticas, surge como mecanismo crucial à sua resiliência.

Em 2023, mais do que empoderamento e capacitação, aquilo que as mulheres realmente necessitam é que as deixem entrar e prosperar nos espaços que lhes têm sido tradicionalmente recusados. Uma Política Externa Feminista pensada não só para, mas através de, a igualdade, tornará a ação externa do Estado português mais eficaz no momento de lidar com os diversos contextos das mulheres a nível nacional e global. A 8 de março do próximo ano cá estaremos para avaliar a coragem política no que diz respeito ao avanço da igualdade de género na política externa portuguesa.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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