Roubo milionário de vinho: 45 garrafas, quatro anos de prisão, 750 mil euros. Mas onde pára o vinho?

O casal que assaltou a adega do célebre e luxuoso hotel e restaurante Atrio de Cáceres, Espanha, recebeu a sua pena. Mas há dúvidas neste roubo, que até inclui uma ex-candidata a miss mexicana.

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Poderá não ser o roubo do século, mas o certo é que o El País lhe chama “​um dos grandes roubos da história de Espanha”​ e é um caso que tem prendido as atenções, no país e além-fronteiras. Entre os larápios, está até uma ex-miss mexicana.

Este policial vai do roubo, no final de 2021, a um hotel de luxo e à sua adega milionária, o Atrio de Cáceres, por um casal que se hospedou no local; à detenção dos suspeitos, no Verão seguinte, na Croácia, que a Fugas já tinha noticiado; até esta semana e ao momento em que no Tribunal Provincial de Cáceres se lavrou a sentença.

São quatro anos de prisão (para ela, mais alguns meses para ele) pelo roubo de 45 garrafas de vinhos de topo, com um primeiro valor lançado de 1,6 milhões de euros, mas que a avaliação da seguradora desceria para quase metade, com um pedido de indemnização, que os acusados terão de pagar, de cerca de 754 mil euros. Só um dos vinhos, um Chateau d’Yquem de 1806, estava marcado a 350 mil euros na carta.

Para além do mediático caso, o roubo teve o seu quê de cinematográfico: o casal constituído por Constantín Dumitru, romeno-holandês, 49 anos, e Priscila Guevara, ex-Miss Earth Estado do México, 28, alojou-se no hotel; depois desceu para jantar no afamado restaurante liderado pelo chef Toño Perez, galardoado com duas estrelas Michelin; pela madrugada, levou a cabo a operação de aliviar o Atrio de 45 garrafas que valem ouro. Desapareceram na noite. Seriam detidos meses depois, julgados e condenados agora. Mas, entre factos apurados e dúvidas, um detalhe não ficou esclarecido: onde foi parar o vinho?

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A adega do Atrio em Cáceres terá no total mais de 40 mil garrafas Atrio

Um roubo decantado

Uns meses antes, o casal já tinha passado pelo hotel, provando-se que estariam a preparar o roubo. A 27 de Outubro de 2021, a mulher, disfarçada e com um passaporte falso suíço, fez a reserva. Deu entrada apenas com uma leve mochila (o leve não é vão, detalha o jornal ABC; por acaso, um empregado agarrou a mochila e não pesava mesmo quase nada).

Mas tarde, surgiu Constantín Dumitru, que ficou para jantar (com pompa e circunstância: um menu de degustação de 14 pratos nível duas estrelas Michelin). Depois do jantar, o casal fez uma visita guiada à adega (visita “normal”). O homem acabaria por ficar alojado no hotel, mas sem fazer o check-in. De madrugada, pelas 2h, Priscila Guevara começa a ligar para a recepção com pedidos de comida, que à partida não foram atendidos, com o recepcionista a desculpar-se por estar sozinho (e a estranhar o apetite, já que o jantar do casal tivera os tais 14 pratos...). Perante a insistência, abandonou a recepção e foi preparar-lhe uma salada.

O desenrolar do que se seguiu nessa noite foi testemunhado por funcionários do hotel e várias partes registadas em vídeo.

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O restaurante Atrio já tem 3 estrelas Michelin Atrio

Durante a ausência do recepcionista, Dumitru retira da recepção um cartão magnético. Tentou entrar na recepção, mas este não funcionou. Entretanto, o empregado voltou ao balcão depois de entregar a salada. Dumitru liga a Priscilla a explicar o desaire. Priscilla volta a fazer pedidos de comida: desta vez, queria algo de sobremesa. O recepcionista acede a levar-lhe fruta. Dumitru aproveita a nova ausência para retirar outro cartão e, desta feita, bingo!, era uma chave mestra. Entra na adega (com uma máscara) e das caves retira as 45 garrafas de vinho. Irá escondê-las em grandes mochilas e sacos — as câmaras registam as suas tentativas de entrada e a saída já com mais peso.

Por volta das 5h, o casal abandona o hotel, ele com a mochilona e os dois sacos. Entram num Mercedes, desaparecem na noite.

Seguem-se nove meses de investigação pelas autoridades espanholas, com apoio internacional, até à detenção do casal numa zona fronteiriça Albânia-Croácia.

Mistérios, dúvidas e vinho

Mas como foi possível a entrada na adega, jóia da coroa do hotel-restaurante, onde se anunciam não 40 ou 45, mas 40 mil garrafas, usada em muitas imagens promocionais e presumivelmente de alta segurança? Segundo relata o El País, que, graças à jornalista Patricia Ortega Dolz, publicou um poirotiano resumo das questões levantadas no julgamento, os registos mostram que o primeiro cartão usado era do quarto 106, onde, por coincidência, estavam nessa noite hospedados amigos dos donos do empreendimento, o chef Pérez e o sommelier José Polo. Por que estaria o cartão na recepção se os clientes estavam no quarto?

O outro cartão, usado para aceder às caves, era o equivalente à chave mestra. E aqui dois dos grandes mistérios, por que retiraram aqueles cartões apenas e como encontraram tão facilmente a chave mestra, já que vários empregados do hotel dizem que é preciso saber reconhecer esse cartão para conseguir identificá-lo correctamente numa gaveta que contém dezenas de cartões todos iguais. E que a chave mestra não tem, propositadamente, qualquer sinal particular à vista desarmada — e só consegue ser identificada pelos profissionais treinados da recepção.

Para mais, de entre os factos testemunhados por empregados, que também são confusos, encontra-se precisamente este do uso da chave mestra: um recepcionista estaria a usar esse cartão na altura em que se supõe que o ladrão já a teria.

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A adega e as suas salas são a jóia da coroa e presumem-se de alta segurança Atrio

Curiosamente, Portugal também surge na história: a ex-miss, que fez chamadas para a recepção a pedir comida para distrair o recepcionista, recebeu uma chamada de Dumitru no seu telemóvel (entre a primeira e segunda tentativas de surripiar cartões na recepção). A chamada foi identificada como proveniente de número registado em nome de um tal Daniel Florín Stanley. Ora este Daniel já tinha historial. E em Portugal: “Ele foi detido por um delito semelhante em Portugal em 2008”, disse um agente citado pelo El País. Vai-se a ver e Daniel e Dumitru são a mesma pessoa, assim o asseguraram as impressões digitais. Sobre o caso português não foram divulgados mais detalhes.

Na lista de dúvidas surgidas na investigação e julgamento, resumidas pelo El País, surge também uma questão de ADN: foi encontrado rasto de uma terceira pessoa desconhecida pelo quarto. A questão tem pairado sobre o caso: agiram sozinhos? Não se sabe. Outra questão prende-se com a mochila e sacos: apenas se viu a mulher com uma pequena mochila, o homem entrou sem bagagem, mas no final acabaram por levar as garrafas em três grandes e pesadas mochilas.

O correcto valor de referência dos vinhos também deu que falar. Se os proprietários inicialmente reportaram uma perda de 1,6 milhões de euros (pelo valor de venda), um enólogo considerou que andariam pelos 1,2M e a seguradora fechou o pedido de indemnização nos 753.454 euros.

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O chef Toño Pérez e o sommelier José Polo, proprietários do Atrio Atrio

Final feliz? Sim e talvez não

Para os proprietários, resume o El País, o roubo tornou-se um filão de boa sorte: publicidade a nível mundial (o caso foi seguido por meios de alcance total, caso da CNN), pouco depois uma terceira estrela Michelin para o restaurante, compra de outro “edifício monumental” (termos do jornal) para ampliar a propriedade, criação de uma fundação cultural.

Quanto à condenação do casal e futuros desenvolvimentos, o caso poderá ter novos capítulos, já que é possível recorrer ainda para o Supremo Tribunal de Justiça da Extremadura.

E onde pára o vinho? Uma boa pergunta, que deixa um prolongamento de mistério na boca. A tal ponto que o acusado Dumitru sublinhou assim esse detalhe no tribunal: “Se eu sou o ladrão, porque é que me pergunto a mim mesmo: ‘Onde estão as garrafas de vinho’?”

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