Do liberal esquizofrénico

Pobres liberais, que são de tudo um pouco e ninguém os toma como o que eles dizem ser.

(Ressalva: não sou militante da Iniciativa Liberal, nem os liberais me encomendaram uma “defesa de honra”)

Não é fácil ser liberal em Portugal. Muito provavelmente, Portugal quase inteiro tem uma aversão genética aos liberais, averbada no lastro histórico e cultural tão bem retratado num ensaio recente de António Bento no Observador (Portugal, um problema estrutural). Ou, por não estarmos habituados a uns lampejos de liberalismo e um partido liberal ter assento na casa da democracia, é preciso denunciar os nefandos liberais que querem emagrecer o Estado, esses mesmos liberais que (homessa!) acreditam na “mão invisível” do mercado e querem-no emancipado do Estado socialista. Para participar nesta denúncia, parece que tudo vale.

Ela é a Carmo Afonso que, na última página do PÚBLICO, mede pela mesma regra os “talks” motivacionais da “pop star” da TVI e os “neoliberais” que rematam pelo individualismo metódico e querem, porque só querem, enriquecer. Sem ter a noção que as generalizações são uma armadilha para quem nelas labora, pois não é recomendável tomar a árvore pela floresta, nem há prova incontestável de que: (i) todos os liberais nascem com a missão de enriquecer; (ii) todos os que transitam pela abastança material são liberais; (iii) todos os yuppies e quejandos são liberais; (iv) todos os militantes da Iniciativa Liberal (IL), ou todos os simpatizantes do liberalismo, são pessoas que nidificam em fortunas colossais. O mundo desenhado a preto e branco deve ser um tédio.

Para a estrela emergente da esquerda radical, que nos vem habituando a prosas pontuadas por uma mundividência tão a preto e branco, é conveniente encostar os “neoliberais” à colheita de personagens que se atêm ao individualismo – esse pecado que abjura a vocação comunitarista do ser humano. São, outra vez, as fracas dioptrias que apenas conseguem discernir o preto do branco: os individualistas que só querem trepar no elevador da riqueza são pessoas más e más pessoas, sendo as boas as que são da cepa de Carmo Afonso. As dicotomias forçadas acabam por ser a prisão de quem as concebe, ao desconhecer a existência de meios-termos e ao programar mal-intencionadas correspondências binárias.

Eles são, também, alguns radicais de esquerda que se socorrem – vejam lá – de Adam Smith para ensinarem aos “neoliberais” como estão equivocados por lançarem a âncora ideológica no teorizador da mão invisível. Querem mostrar, com alguma ginástica intelectual que inclui notáveis piruetas hermenêuticas, que Smith ensinou o contrário do que é defendido pelos “neoliberais”. O mais recente apóstolo do Smith-que-tira-o-tapete-aos-liberais é Francisco Louçã, que em bem preparada prosa atirou umas citações certeiras para ensinar aos liberais que: (i) ou procuram outra âncora intelectual – de preferência uma que os faça resvalar para a extrema-direita, não importando distingui-los da genuína extrema-direita (o Chega, para consumo interno); (ii) ou ficam órfãos de referências, pois o “pai Smith” rejeita, desde o túmulo e depois de nomear Louçã como seu porta-voz, a paternidade destes abencerragens de um liberalismo datado.

Ele é, ainda, Nuno Melo, líder do defunto CDS, que, exultante pelo regresso de cem militantes que se tinham tresmalhado no Chega e no Aliança, aproveitou a festividade para sentenciar que a IL “é um partido de centro-esquerda”. Um liberal não o pode ser nos costumes, pois os conservadores só aceitam que alguém seja de direita se for conservador(a) nos costumes. Deste modo, ficamos a saber que um liberal que o seja nos costumes está, de acordo com os padrões de um conservador de gema, encostado à esquerda.

Quem assim sentencia é de uma linhagem próxima das sotainas que habitam presbitérios, sacristias e confessionários. Nuno Melo expulsou da direita os liberais, atirando-os para o colo da esquerda, que, por sua vez, os renega. Pobres liberais, que são os patinhos feios de toda a gente.

E até o senhor primeiro-ministro não disfarça quando, abespinhado, retorque aos liberais com uma veemência que não usa para os demais adversários políticos, apoucando-os como queques” (que guincham), numa variante da anatomia socioeconómica oferecida aos cânones por Carmo Afonso. Dos partidos da esquerda radical vem o pior dos opróbrios: os liberais são de extrema-direita, ou os liberais não são democráticos, cumprindo-se um ritual do regime que nos ensina que “a direita” (um largo campo político-partidário) não pode governar porque é “fascista”, ou não esconde tendências fascizantes. Pobres liberais, que são de tudo um pouco e ninguém os toma como o que eles dizem ser.

Se eu fosse aos liberais, metia um requerimento para me libertarem deste colete-de-forças que me atira de um lado para o outro e deste para trás, e eventualmente para um lugar próximo de um ermo, sem eu ter sido consultado na delimitação das convenções. Não deve ser empreitada fácil ser aquilo que os oponentes querem que o(a) liberal seja, pese embora o não seja; ou não se rever no protótipo que dele(a) fazem os adversários e críticos, achando-se em terra de ninguém, numa errância dilacerante, caso não tenha força de espírito (e uma espinhal dorsal com a necessária verticalidade) para não fazer concessões ao que os adversários querem que ele(a) seja.

Se fosse um liberal assim acossado, diria que não sei ser o que não sou e que isso é suficiente para usar como bússola.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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