Habitação: processo de mudança em curso

Não é o PREC 2.0, como apregoado pela direita mais reativa, mas anuncia uma mudança importante nas políticas de habitação em Portugal, ao contrário do que defende a esquerda à esquerda do PS.

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O documento Nova Geração de Políticas de Habitação foi aprovado pelo Governo em 2018 Nelson Garrido

Finalmente, o Governo parece ter interiorizado que a Nova Geração de Políticas de Habitação (NGPH) não é “a” solução para a crise habitacional, de carácter estrutural, que despontou em 2015/16. Quando foi lançada, em 2018, a NGPH propunha-se resolver essa crise através de uma compensação – importante, mas insuficiente – dos défices acumulados das políticas de habitação em Portugal: a ambição desta nova política, dirigida a vários segmentos da população e já não apenas aos mais carenciados, era concretizar o pilar incumprido do Estado-Providência português – o pilar da habitação.

A falta de meios financeiros para a efetiva operacionalização da NGPH, resolvida a posteriori e por acaso com a chegada do PRR, mostra a ingenuidade da sua ambição ou, numa perspetiva mais cínica, a sua demagogia. Mas havia outro problema: é que a crise estrutural que a NGPH se propunha resolver, possivelmente agravada por esses défices da oferta pública, resultou sobretudo de mudanças profundas no mercado mudanças da oferta e da procura na sequência da intensificação da financeirização e da internacionalização do sector.

E é o pacote Mais Habitação que vem, pela primeira vez, tocar na causa principal dessa crise estrutural: o mercado. Em simultâneo, adiciona medidas de mitigação da crise conjuntural que entretanto se instalou (inflação e taxas de juro), afetando agora um segmento que se mantivera protegido dessa crise estrutural – os proprietários com empréstimo. E se este pacote não é o PREC 2.0, como apregoado por muitas vozes da direita mais reativa, ele anuncia uma mudança importante nas políticas de habitação em Portugal, ao contrário do que defende a esquerda, à esquerda do PS: uma mudança, alinhada com o que se passa noutros países e cidades, e que, concretizando alguma regulação do mercado, é já conceptualizada como “pós-neoliberalização” das políticas de habitação.

A convergência com a Europa também é isto e é também a reação expectável dos agentes do sector, da oposição, de ativistas ou de comentadores mais ou menos comprometidos.

O facto de o Governo ter lançado este pacote de forma relativamente atabalhoada apresentando um conjunto de medidas que muitos acusam de desconexas, injustas, pouco assertivas, difíceis de executar e com uma pormenorização divulgada a conta gotas – não deve ser um argumento para a manutenção do statu quo. O pouco tempo que o Governo deu para a sua discussão não ajuda: reforça o pânico e a repulsa entre os agentes diretamente envolvidos no processo, alimentando a sua ânsia de vitimização perante a opinião pública; fomenta a corrida de comentadores ao sound bite mais bombástico; e dificulta a razoável negociação das várias medidas e o questionamento sobre as suas vias de operacionalização.

De facto, a operacionalização deste pacote é o seu problema essencial por dois motivos:

I. Primeiro, pela impreparação e insuficiência de recursos humanos das instituições responsáveis pela concretização de grande parte das medidas, do Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana às autarquias. Um problema agravado pela acumulação da execução do PRR que no caso da habitação se tem revelado especialmente débil e, não menos importante, pelo emaranhado regulamentar e legislativo criado pelo próprio Estado.

II. Segundo, porque face à atual primazia da habitacão na agenda política e à sobreposição dos níveis de governação, nacional e local, das políticas habitacionais o poder autárquico encontra nesta questão uma excelente oportunidade de reforço do seu protagonismo nas lutas inter e intrapartidárias: veja-se o timing, a forma e a substância das reações dos presidentes das câmaras de Lisboa e Porto.

Quanto à negociação, há agentes mais abertos do que outros. Negociar com o jovem presidente da Associação de Promotores e Investidores Imobiliários, cheio de certezas irrefutáveis, ou com o sempre zangado presidente da Associação Lisbonense de Proprietários cuja atitude tem contribuído para uma injusta perceção dos senhorios como uma amálgama indiferenciada de gente insensível, não será o mesmo do que o fazer com os mais dialogantes representantes da Associação de Alojamento Local em Portugal ou da Ordem dos Arquitetos. Mas há, pelo menos, três princípios que devem presidir a estas negociações, seja qual for o grau de abertura dos vários agentes envolvidos, incluindo o Parlamento: 1.º realismo; 2.º equidade; 3.º respeito pela diversidade territorial.

  • O princípio do realismo implica que o Estado conheça tanto as suas próprias limitações e as implicações daí resultantes, como o modus operandi e o quadro de perceções e motivações dos seus interlocutores. O autoconhecimento do Estado permite-lhe definir as suas possibilidades de ação, no curto e médio prazo, e o que deverá mudar caso mantenha as suas atuais ambições. O conhecimento dos seus interlocutores ajuda-o a prever reações e eventuais efeitos perversos das medidas equacionadas.
  • O princípio da equidade pressupõe o entendimento das desiguais condições de exercício das inúmeras atividades abrangidas por este pacote (do alojamento local à produção de habitação), a valorização da progressividade das medidas ou a eliminação de alguns privilégios que alimentaram esta crise estrutural: do regime de residentes não habituais ao visto para nómadas digitais, não esquecendo os fundos de investimento imobiliário.
  • O princípio do respeito pela diversidade territorial implica reconhecer que, porque esta crise não afeta os territórios de forma igual havendo até diferenças significativas entre diversas zonas de uma mesma freguesia, também as medidas e os seus critérios devem ser diferenciados.

Seja qual for o resultado da discussão pública e parlamentar do Mais Habitação, há um processo de mudança em curso que só agora começou e que, não sendo linear nem de rutura integral com o passado recente, irá com grande probabilidade determinar a agenda política, mediática e cívica dos próximos anos.

E não será a concretização dos projetos de habitação do PRR, pressupondo que isso venha a acontecer, que o travará: é que não há oferta pública que chegue para compensar a agudização das distorções do mercado ocorrida na segunda década do sec. XXI, nem em Portugal, nem em nenhum outro país. Assim como não há Governo, de direita ou de esquerda, democrático ou populista, que fique imune à, mais que previsível, contínua pressão da opinião pública e dos media.

A autora escreve segundo 0 novo acordo ortográfico

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