É altura de os pretos saírem do armário

Portugal fez um trabalho muito positivo na integração dos imigrantes e é decisiva uma atenção social e política redobrada para, pelo menos, evitar recuos nessa matéria.

O título é intencionalmente provocatório e acrescento esse apelo a que todos os imigrantes, descendentes e cidadãos que acreditam na construção de um Portugal tolerante, inclusivo e que faz da interculturalidade um fator de enriquecimento, e não um chão para a emergência e consolidação de uma narrativa e práticas racistas, para saírem do armário. Por se ter uma atitude de indiferença e de negligência individual e coletiva perante práticas que tendem a minar os alicerces fundamentais de uma sociedade livre, intercultural e inclusiva paga-se um preço muito elevado.

Estamos, hoje, a lidar com a normalização democrática de um partido de extrema-direita, que passou a ter 12 deputados na Assembleia da República com base nos 385.559 votos obtidos. Independente das motivações que estão na base das legítimas escolhas dos eleitores e, ao contrário do que muitos defendiam – de que Portugal estaria imune aos ventos racistas e xenófobos –, a verdade é esta: pela primeira vez na história da democracia portuguesa temos um partido xenófobo e racista como a terceira força. Por isso mesmo, o primeiro mito que é urgente desconstruir é o de que Portugal é imune aos discursos e práticas racistas. Portugal não é melhor nem pior do que os outros países nessa matéria, no sentido em que, perante um conjunto de condições sociais e políticas, a emergência e consolidação dos partidos racistas e xenófobos, de repente, acontece.

Por isso, essa batalha tem de ser muito racional e não assente numa lógica de moralidade e na divisão entre os maus (os racistas e os seus apoiantes) e os bons (os não racistas) ou entre os estúpidos e os inteligentes.

Nos últimos tempos, começamos a vivenciar as consequências dessa consolidação da extrema-direita: a legitimidade dos votos dos 7,18% dos portugueses, conferindo poder legislativo e exposição mediática, fazendo com que muitos racistas lusos queiram sair do armário. O mais recente foi o ataque a um imigrante do Nepal em Olhão e outros episódios irão, infelizmente, surgir. O Presidente da República tem tido uma intervenção pedagógica muito assertiva e relevante.

Mas ter respeito – no sentido de que foram eleitos – significa também que devemos ser intelectualmente sérios para dizer isso: a partir do momento em que temos uma força política com 12 deputados, que passa de 1,29 para 7,5% no intervalo de dois anos, criamos as condições para que o Chega possa vir a ser decisivo na formação de opções de governação em Portugal, senão mesmo de vir a liderá-las.

Com o enfraquecimento dos partidos da direita, aliado a uma narrativa do “nim” sobre o tema da imigração por parte do PSD – que está repleto de contradições intencionais – tendo como propósito fechar os olhos ao eleitorado que hoje vota no Chega e, simultaneamente, não deixar escapar o seu eleitorado habitual, irá – até pela experiência de outros países como é o caso da Suécia – reforçar-se a extrema-direita.

Nesse momento, temos duas agravantes em Portugal que acabam por tornar a situação ainda mais complexa: a primeira tem a ver com a esperada deterioração da situação económica e social, que está a atingir de forma particularmente dura a classe média. Nessas situações, ter um bode expiatório (neste caso os imigrantes) e um líder político que, a partir de uma realidade complexa, produz um discurso simples, é um fertilizante eficaz para a consolidação da extrema-direita.

A segunda agravante tem a ver com a própria realidade económica e demográfica de Portugal, em que a discussão deverá centrar-se em não se o país precisa de imigrantes ou não, mas sim em que condições e que com velocidade seremos capazes de ter mais imigrantes. Nem vou chatear o leitor com estatística. Partilho, todavia, uma situação em concreto: já repararam quem está a limpar as casas de banho do aeroporto de Lisboa ou a trabalhar em dezenas de restaurantes? Este exemplo é para ilustrar o que todos nós sabemos: Portugal precisa urgentemente de imigrantes para os diferentes setores de atividade (agricultura, hotelaria, construção e indústria são os mais críticos). O problema é que alguns querem apenas de mão de obra e não pessoas. Lamento dizer, mas isso não existe. Vem mão de obra para resolver um problema, mas a sua cultura e expectativas não ficam no aeroporto de partida.

Também é importante ter em consideração que quem dita a dinâmica dos fluxos migratórios é o mercado de trabalho, e não a política. A política o que faz é, por um lado, agilizar mecanismos legais para que essa mobilidade possa ocorrer de forma legal e, por outro, criar todas as condições necessárias à sua integração na sociedade de acolhimento, onde a perceção das pessoas têm um papel crucial.

Nos últimos anos, Portugal fez um trabalho muito positivo em torno do processo de integração dos imigrantes e é decisiva uma atenção social e política redobrada para, pelo menos, evitar recuos nessa matéria.

As recentes alterações à Lei da Imigração são globalmente positivas e vão, em minha opinião, no caminho certo. Porém, é preciso criar as condições, nomeadamente, a nível de recursos humanos para que os serviços, tanto aqui em Portugal como nos consulados portugueses, possam dar respostas dentro de um período de tempo razoável. O tempo de resposta em Portugal e nos diferentes consulados, decorrentes da falta de meios humanos, tem minado as virtudes da atual política de imigração.

Por isso, e num momento em que Portugal enfrenta, ironicamente, problemas estruturais a nível demográfico e de mão de obra em alguns sectores, a questão chave é como conjugá-la com a crescente legitimação de um discurso racista e xenófoba.

Não tenho a resposta, mas tenho a certeza de três coisas: a primeira é que as omissões ou atitudes de minimização de sinais que vão surgindo aqui e acolá constituem também um fortíssimo aliado a propagação do racismo e da xenofobia; a segunda é que é importante deixar de ter uma discussão excessivamente moralista e ideológica em matéria de imigração para lidar com a extrema-direita. É necessário muita racionalidade e pragmatismo nessa matéria, ao mesmo tempo que se impõe que quem vem para cá para trabalhar não seja diminuído na sua condição de cidadão.

Mas, também, temos – enquanto imigrantes - a nossa quota parte de responsabilidade em todo esse processo, nomeadamente no agravamento do grau da nossa invisibilidade política e no aumento do espaço da extrema-direita em Portugal. Muito desse combate deverá ser feito nas escolas, no espaço público e a partir de uma militância política ativa em torno de construção de uma sociedade portuguesa decente. Mas também na política partidária. Por isso, hoje, precisamos de cerrar as fileiras em torno de um Portugal onde todos nós possamos ter um lugar digno à mesa.

Equivale dizer sair do armário e fazer ouvir a nossa voz e reiterar a nossa disponibilidade para fazer avançar esse Portugal que é branco mas também mulato e preto; um Portugal onde o português tem várias pronúncias.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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