Este providencialismo que nos infantiliza

Vamos de messianismo em messianismo, insatisfeitos com a casta de regentes e apostando em personagens providenciais que não personificam alternativa válida.

(Continuação do artigo de opinião publicado em 31 de janeiro de 2023, com o título “A desobediência como dever?”)

De tanta pequenez que nos apoquenta, vertemos a esperança em figuras que se prometem míticas no futuro. Estas personagens estilhaçam os padrões estabelecidos. No caso da paisagem política, rasgam o monopólio dos partidos, colhendo frutos no cansaço das personagens de sempre e tirando partido dos fracos pergaminhos dos regentes que se sucedem e eternizam o passado.

Os promitentes mitos têm lucidez. Observam meticulosamente o que os rodeia. Participam no coletivo esgar de desprazer à medida que os habituais atores políticos alternam na regência e os problemas que mergulham a sociedade num, ao que parece, irremediável atraso não encontram patente que os resolva. Aparecem, uns do nada, outros de uma coisa qualquer em nada aparentada com a paisagem política. E como não participam na oligarquia dos partidos, cativam as preferências de muitos que deixaram de se rever nos atores que fazem parte desse ecossistema.

Prometem diferença, apenas. Não é promessa que devesse ser suficiente para atrair uma multidão. Anunciando-se a antítese das personagens que nada resolvem, esperam ser fieis depositários de um povo desesperançado. Um povo que aprendeu a apostar em figuras providenciais que, depois, se dissipam num nevoeiro. Os que precisam deste sebastianismo partem de uma lógica de mínimos: a alternativa às promitentes figuras providenciais é continuar a escolher os atores políticos de sempre, que cada vez menos são merecedores de confiança. Sem saberem que ideias têm as figuras providenciais caso lhes seja mandatado o poder. É uma aposta no escuro. Uma reação por antinomia. Uma proposta minimalista.

Esta lógica expõe dois sintomas graves. Primeiro, a alternativa aos habituais atores políticos não se manifesta pela qualidade, mas pelo desgaste destes e pela procura de uma qualquer alternativa, sem ter o cuidado de sopesar a validade das alternativas através do que elas possam conter de substancial. Não é uma escolha genuína, é uma escolha fundamentada na recusa de alguém. O que não é inédito nos processos eleitorais: a ciência política descobriu o teorema do “voto com os pés” para caracterizar este fenómeno. Assim sendo, os atores que integram a oligarquia político-partidária são os primeiros culpados pela aparição (a palavra não é inocente) de messiânicas personagens cheias de vazio.

O fenómeno encerra um segundo sintoma inquietante: a incapacidade (ou a ignorância) de os promotores de providenciais personagens aprenderem com a História. Que seja nomeada uma figura messiânica que tenha conseguido superar o estatuto de promessa, se depressa derruíram nos escombros a que as suas intenções foram reduzidas. No máximo, os messianismos do passado tiveram o condão de fazer o presente marcar passo e de adiar o futuro.

Olhando ao panorama atual, parece que emergem duas personagens que não cabem na lógica partidária e que reclamam uma posição no xadrez onde se movem as figuras políticas. Um é o almirante que comandou o processo de vacinação contra a covid-19 com a mão-de-ferro que ainda é muito apreciada por um certo estar salazarento que mal se disfarça. A outra é uma arrivista responsável pela programação de uma estação de televisão e que agora tem um imenso séquito que a reconhece como “guru motivacional”.

O primeiro até já foi empurrado para as presidenciais por jornalistas talvez coniventes com a equação providencial. Não se pôs de fora sem admitir que ia a concurso, numa ambiguidade que parece deixar a porta aberta à candidatura.

A segunda, atendendo à ascensão meteórica, a uma ambição irrefreável, a um narcisismo que amplifica a ausência de qualidades e a um misticismo que atrai seguidores (a visão de N. Senhora de Fátima nos seus sapatinhos Louboutin merecia entrar para o anedotário universal), quem sabe se não se encontra na casa da partida para rivalizar com o almirante das vacinas. Não gosto de oráculos, mas se isto puder ser considerado um oráculo, sou o primeiro a protestar, antes do tempo, a sua validade.

E assim vamos de messianismo em messianismo, insatisfeitos com a casta de regentes e apostando em personagens providenciais que não personificam alternativa válida. Quando uma personagem providencial acaba por fracassar, a consequência é o refúgio na casta de sempre. Os habituais detentores do poder acabam por ser a reserva moral de si mesmos, num processo que tem tanto de paradoxal como de absurdo. Os mitos que não se cumprem obrigam as bases a voltar ao pecado original. Os messianismos são a melhor caução dos poderes estabelecidos.

, Professor universitário

(O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico)

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