O xerife que é forte com os fracos

A demolição das torres do Aleixo (e, antes, do bairro S. João de Deus), no Porto, veio, sem surpresa, pulverizar o consumo e o tráfico. As pessoas são as mesmas, mas agora estão mais à mostra.

O Presidente da CM do Porto, Rui Moreira, está “cansado de ouvir falar apenas na dignidade do consumidor” de drogas e diz ser “preciso criminalizar” o seu uso no espaço público. Duvida do sucesso da lei da descriminalização, cujo objetivo julga ser fazer recuar o uso de drogas ilegais. Afirma também não conhecer os números em detalhe. Seguem alguns esclarecimentos.

A lei da descriminalização, em vigor desde 2001, não é a mesma que regula o tráfico, que permanece enquadrado por um decreto-lei de 1993. As forças de segurança dispõem dos mesmos instrumentos legais de que dispunham há 30 anos. E embora o consumo, dentro das quantidades estabelecidas, não seja crime, é uma contraordenação sujeita a sanções. Também aqui, as forças de segurança dispõem de enquadramento legal para intervir.

Depois, existe um quasi consenso de que a descriminalização não está associada a mudanças nas tendências de consumo. Já a sua criminalização, como alerta a ONU, traz consequências negativas para a saúde, segurança e direitos humanos de indivíduos e comunidades um pouco por todo o mundo.

A lei da descriminalização é um sucesso incontestável na medida em que, através da implementação de medidas de Redução de Risco, veio ampliar o acesso das pessoas que usam drogas a serviços básicos, no âmbito social e da saúde.Olhe-se a alguns indicadores. Em 2001, a mortalidade relacionada com drogas caiu drasticamente e, com algumas flutuações, mantém-se hoje entre as mais baixas da Europa. Portugal foi, em 2001 e 2002, responsável por mais de 50% de todos os novos diagnósticos de VIH atribuíveis ao uso de drogas injetáveis na União Europeia. Em 2019, esses números tinham caído para 1,68%.

Em 2001, os crimes relacionados com drogas ilegais eram a principal razão para as sentenças de prisão efetiva, muito acima da média europeia, proporção que encolheu de 40% para 15%, situando-se agora abaixo da média europeia. Entretanto, o uso de heroína, ainda que elevado, vem a perder relevância – em 2000, era o segundo mais alto da Europa – e registam-se, em comparação com outros países europeus, incluindo aqueles que criminalizam o consumo, níveis razoavelmente baixos de uso de outras substâncias ilegais.

Não há mais uso problemático de drogas em contexto de rua, a versão que gera mais alarme social, do que no fim dos anos 90, altura em que era crime. Mas, no caso do Porto, a demolição das torres do Aleixo (e, antes, do bairro S. João de Deus) – cujo álibi foi o consumo e o tráfico – veio, sem surpresa, pulverizar precisamente o consumo e o tráfico, trazendo-lhes redobrada visibilidade. As pessoas são as mesmas, mas agora mais à mostra.

É certo que os moradores têm direito a sentir-se seguros. Mas a solução não está na repressão (porque nunca funcionou), está na resposta social. Rui Moreira, reconheça-se, avançou com a primeira sala de consumo assistido da cidade. Mas esta é insuficiente, como é insuficiente o alojamento digno para as pessoas sem-abrigo. As tendas espalhadas pela cidade mostram-no bem; não apenas as 14 que foram levadas na “operação de limpeza” ordenada pelo autarca.

Quando o braço social do Estado encolhe, o braço penal tende a esticar. São inversamente proporcionais. Apregoar mais Estado no âmbito da justiça e menos no da resposta social é particularmente perverso para as pessoas pobres que usam drogas. E interessa pouco que parte delas venha de outras localidades. É previsível, a maioria vai ao supermercado, não vai à mercearia da esquina. E o supermercado está no Porto.

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