Violência doméstica e processo de divórcio: dispensa da tentativa de conciliação

A verdade é que, como é tristemente usual, legisla-se mal, sem consideração pela unidade do sistema, e sem cuidar de averiguar o possível impacto das alterações no funcionamento dos tribunais.

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A lei parece "ignorar a presença dos advogados no sistema de justiça" rui gaudencio/arquivo

A Assembleia da República aprovou recentemente uma lei que permite dispensar, nos processos de divórcio, a tentativa de conciliação em casos de violência doméstica (VD). A ideia parece ser a de evitar a revitimização, impedindo que a vítima seja obrigada a estar na presença do seu agressor. Como é tristemente usual nestas coisas, os fins são nobres, mas o resultado deixa algo a desejar.

O processo de divórcio dito “litigioso” inicia-se com a formulação do pedido de divórcio ao tribunal a que se segue uma tentativa de conciliação. Tem por objetivos reconciliar os cônjuges e, não sendo tal possível, explorar a possibilidade de converter para mútuo consentimento o divórcio que começou por ser “litigioso”. E, refira-se, muitas das tentativas de conciliação são bem-sucedidas e o divórcio é decretado no próprio dia em que aquelas se realizam.

A Lei n.º 3/2023, de 16 de janeiro, veio agora prever que, em casos de VD, a vítima poderá pedir dispensa desta tentativa de conciliação, mas apenas nos casos em que tenha sido ela a pedir o divórcio.

Ora, não se compreende por que motivo esta possibilidade só está prevista para os casos em que foi a vítima a instaurar o processo de divórcio, mas já não quando é o agressor quem inicia o processo. Ou se trata de um lapso manifesto da lei, ou então baseia-se na crença, errónea, de que só as vítimas de VD pedem o divórcio, mas já não os agressores.

Por outro lado, a dispensa da tentativa de conciliação impedirá também que se consiga na ocasião um consenso entre as partes, empurrando-as para o julgamento e, assim, perpetuando o litígio. Impede-se também que, mesmo não existindo acordo quanto ao divórcio, se chegue a entendimento relativamente aos outros assuntos a decidir (atribuição da casa de morada de família, alimentos entre cônjuges, regulação das responsabilidades parentais relativamente aos filhos do casal, etc.).

A nova lei obriga a burocracias acrescidas, pois o juiz do tribunal de família não tem possibilidade de saber se o(a) réu(é) foi condenado(a) ou é arguido(a) nalgum processo de violência doméstica contra a outra parte, e, mesmo assim, está obrigado a informar a vítima que poderá solicitar a dispensa da tentativa de conciliação. Isto obrigará, de acordo com a interpretação que os tribunais venham a fazer desta lei, a que se tenha de proceder a averiguações prévias para apurar a existência de algum processo de VD, obrigando também a despachos e notificações adicionais.

O legislador parece também ter esquecido que, no âmbito da família, existem outros momentos judiciais que obrigam à presença simultânea de ambas as partes em tribunal (atribuição da casa de morada de família e inventário para partilha dos bens do casal, por exemplo). Por que razão esta possibilidade de dispensa apenas se aplica aos processos de divórcio?

O legislador olvidou ainda que a Lei 112/2009, de 16 de setembro (Regime Jurídico Aplicável à Prevenção da Violência Doméstica e à Proteção e Assistência às Suas Vítimas) permite já solicitar ao tribunal medidas que, por exemplo, evitem a presença simultânea de vítima e agressor na mesma diligência judicial, podendo a vítima, por exemplo, solicitar a participação por meio de videoconferência. E não se diga que as vítimas de VD desconhecem tal possibilidade quando, nos processos de divórcio, elas são necessariamente representadas por advogado.

A lei reforça a ideia de que os tribunais são locais inseguros e parece também ignorar a presença dos advogados no sistema de justiça.

Não temos dúvidas que os fins visados pelos promotores da Lei n.º 3/2003 são nobres, mas a verdade é que, como é tristemente usual entre nós, legisla-se mal, sem consideração pela unidade do sistema, e sem cuidar de averiguar o possível impacto das alterações no funcionamento dos tribunais.

Por que razão, estando as partes representadas por advogado, não se previu simplesmente que as vítimas de VD se poderiam fazer representar nesse ato pelo seu advogado? Evitar-se-ia a presença simultânea de vítima e agressor no tribunal e continuaria aberta a possibilidade de obtenção de um acordo que permitisse pôr termo ao processo judicial.


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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