Cientistas querem “editar” genes do arroz e torná-lo mais tolerante ao calor

Faculdade de Ciências do Porto coordena projecto europeu para “editar” os genes do arroz com a técnica CRISPR e, assim, torná-lo mais resistente às alterações climáticas.

MR - Manuel Roberto - 20 de Janeiro de 2023 - Portugal - Porto - Faculdade de Ciencias - Arroz - Genetica
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O projecto CRISPit tem como objectivo compreender melhor os mecanismos biomoleculares que regulam a tolerância ao calor durante o processo reprodutivo do arroz Manuel Roberto
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O projecto CRISPit conta com um financiamento europeu no valor de 588 mil euros, dotado pelo Programa Horizonte Manuel Roberto

No laboratório da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (FCUP), há uma garrafa de vinho espumante com um rótulo curioso. Lê-se “CRISPit” no papel colado ao vidro escuro. Não é uma marca vinícola, mas sim o nome de um projecto internacional que pretende “editar” genes do arroz e torná-lo mais resistente às alterações climáticas.

“Recordo-me de estar a vir de carro para o trabalho e a [investigadora] Ana Marta ligar a perguntar se eu estava sentada, porque tinha uma notícia para dar: tínhamos recebido o financiamento. Comemorámos com bastante alegria, porque estes projectos são muito competitivos”, conta ao PÚBLICO Sílvia Coimbra, professora e investigadora principal do laboratório de reprodução sexual e desenvolvimento das plantas da FCUP.

Com um financiamento europeu no valor de 588 mil euros, dotado pelo Programa Horizonte, o CRISPit tem como objectivo compreender melhor os mecanismos biomoleculares que regulam a tolerância ao calor durante o processo reprodutivo do arroz. A FCUP vai coordenar, ao longo de quatro anos, um consórcio internacional com dez parceiros em países como a Itália, a França, os Estados Unidos, o Japão e o Vietname. Em Portugal, contam com a colaboração do Instituto de Tecnologia Química e Biológica, em Lisboa, e da Deifil, uma empresa de biotecnologia vegetal.

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Consórcio internacional, liderado pela Universidade do Porto, recorre a técnica de edição genética para tornar o arroz mais tolerante ao calor.

“É importante estudar o impacto das alterações climáticas nas plantas com relevância agrícola, porque as diferenças de temperatura, assim como do grau de salinidade, vão ter um impacte na produtividade – ou seja, vão afectar a quantidade de alimento que vamos obter. Sabendo que o planeta está a aquecer e a população a aumentar, estes estudos são necessários para ultrapassar dificuldades e manter uma boa produtividade agrícola”, faz notar a investigadora Ana Marta Pereira.

O que é a CRISPR-Cas9?

A palavra curiosa escrita na garrafa – CRISPit – é uma referência ao nome (não menos estranho) de uma técnica de edição genética chamada CRISPR-Cas9. Com esta ferramenta, os investigadores esperam poder editar genes específicos do arroz, por forma a obter variedades capazes de resistir à subida gradual da temperatura no planeta.

A CRISPR-Cas9 foi criada, há pouco mais de uma década, por uma dupla de investigadoras da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, e do Instituto Max Planck de Berlim, na Alemanha. Rápida e acessível, a técnica funciona como uma tesoura molecular, permitindo alterar e corrigir genes-alvo com precisão.

O segredo de tamanha exactidão está numa enzima chamada “Cas9” – e daí parte do nome da técnica. A enzima, proveniente da bactéria Streptococcus pyogenes, funciona como um instrumento de corte, só que ao nível molecular. Uma vez encaixada num pedacinho de ARN (uma molécula parecida com o ADN), é capaz de entrar em células vivas e cortar o ADN em locais previamente indicados pelas “ordens químicas” do ARN.

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A investigadora Sílvia Coimbra, professora da Faculdade de Ciências do Porto, coordena o projecto internacional CRISPit Manuel Roberto

“Há um mundo de utilizações para esta técnica. No nosso caso, vai permitir a obtenção de plantas editadas. Contudo, o sucesso da técnica tende a ser baixo. Temos de fazer a edição em centenas de plantas, seleccionar muitas e depois ver o resultado. No arroz, esta técnica tende a funcionar um pouco melhor”, explica Sílvia Coimbra.

Antes de chegar ao produto final – os grãos de arroz “editados” –, o projecto prevê diferentes etapas, distribuídas pelos parceiros de investigação e ao longo de quatro anos. Haverá também intercâmbio de investigadores, incluindo, no final, uma fase de trabalho de campo no Vietname.

Testes das “plantas editadas” no Vietname

A primeira parte concentra-se numa análise chamada “transcriptómica”, que consiste no estudo pormenorizado da expressão dos genes que vão estar alterados nas plantas que são submetidas ao calor (em relação àquelas que não foram expostas a stress térmico).

“Que genes são esses e como estão alterados? Estas são as perguntas que vamos estar a fazer. Depois desta fase de selecção, na qual vamos eleger quais são os genes que queremos estudar, passaremos a uma segunda grande parte do trabalho: vamos estudar em todos os laboratórios do consórcio a importância destes genes para a planta (usando desde técnicas de microscopia a outras de biologia molecular básica), para perceber como eles actuam”, explica Ana Marta Pereira.

Quando a equipa tiver uma boa compreensão de como cada gene mutante pode contribuir para melhorar a performance reprodutiva das plantas, passa-se à fase final do projecto. Só nessa fase derradeira é que as plantas “editadas” vão ser testadas – neste caso, no Vietname, onde é autorizado o cultivo de arroz manipulado geneticamente. Nenhuma variedade transgénica está permitida para cultivo, venda ou comercialização na União Europeia.

Câmara de crescimento onde as plantas-modelo são mantidas em condições controladas de temperatura e humidade Manuel Roberto
Plantas-modelo Arabidopsis thaliana ainda "bebés" Manuel Roberto
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Câmara de crescimento onde as plantas-modelo são mantidas em condições controladas de temperatura e humidade Manuel Roberto

“Não estão previstos testes em solo nacional por causa da regulação. Podemos fazer esses estudos em estufas interiores e isso já se faz. A nossa legislação é restritiva, porque a União Europeia ainda considera que as plantas editadas com a técnica CRISPR são organismos geneticamente modificados. Não concordo, acho que há muita desinformação. Embora compreenda o medo das pessoas, a técnica é muito segura”, garante Ana Marta Pereira, que falava ao PÚBLICO com o filho de quatro anos ao colo. “Daria estes alimentos ao Tomás sem qualquer problema”, acrescenta.

Historicamente, a manipulação genética de organismos comestíveis tende a estar envolta em polémica. O arroz dourado – ou golden rice​, como é mais conhecido –, por exemplo, continua a ser rejeitado por muitos países, apesar de ser descrito pela comunidade científica como um alimento que pode “salvar vidas”. Esta variedade, mais amarelinha do que aquelas que consumimos em Portugal, foi geneticamente modificada em 2004 para produzir altos níveis de betacaroteno (precursor da vitamina A).

A ideia era usar estes grãos amarelos para combater a deficiência crónica de vitamina A em países desfavorecidos, onde esta carência põe em risco a saúde de crianças. As Filipinas já deram luz verde para o “arroz dourado”, mas o produto continua a encontrar grande resistência noutras regiões com o mesmo problema de saúde pública.

Arabidopsis thaliana, a planta-modelo

Engana-se quem pensa que todas as etapas do projecto CRISPit são feitas usando o arroz em laboratório. Se, por um lado, é verdade que o projecto gravita à volta dessa planta, por outro, é muito comum na ciência usar modelos animais ou vegetais na primeira fase do trabalho. Isto permite dar os primeiros passos num terreno conhecido, com a ajuda de um organismo bem caracterizado, e assim fazer avançar mais rapidamente a investigação.

“Vamos fazer algumas análises iniciais na planta-modelo e só depois tentar fazer a comparação para o arroz. Esta planta-modelo chama-se Arabidopsis thaliana e funciona para nós como os ratinhos de laboratório. Cresce mais rapidamente, tem um ciclo de vida curto e, por isso, conseguimos reunir informação mais rapidamente”, explica ao PÚBLICO a investigadora Sara Pinto, que está a acabar a tese de doutoramento na FCUP.

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Arabidopsis thaliana, a planta-modelo usada pelo consórcio internacional do CRISPit Manuel Roberto

Como tem um ciclo de vida mais rápido – até seis semanas –, os testes com a Arabidopsis thaliana produzem resultados mais depressa. Com o arroz, tudo seria mais lento. Recorrer a esta planta-modelo é como usarmos o comando para acelerar o filme e, dessa forma, compreendermos mais cedo o final da história.

A Arabidopsis thaliana é uma das espécies mais populares em laboratórios internacionais. Não tem importância económica directa, mas possui um valor inestimável para projectos na área da genética, bioquímica e fisiologia. Desde o sequenciamento dos 26 mil genes que compõem o genoma da A. thaliana, há cerca de 23 anos, aumentou significativamente o número de trabalhos que recorrem a ela como modelo para estudar o desenvolvimento de variedades agrícolas mais resistentes, adaptadas e produtivas.

As plantas vão ser estudadas sempre em dois cenários: um típico e outro de calor. Esta comparação vai permitir perceber quais estão mais adaptadas. Estão previstos vários estudos, da macroscopia à bioquímica, “para avaliar se o produto final, tanto ao nível de qualidade como de quantidade, melhorou”, sublinha Ana Marta Pereira.

Todas as etapas, se correrem como a equipa deseja, permitirão definir genes marcadores na variedade de arroz, gerar um conjunto de dados transcriptómicos (ou seja, que pormenorizam a expressão dos genes) e, por fim, obter e caracterizar mutantes dos genes escolhidos para fornecer linhagens de arroz produzido com a tecnologia CRISPR.

“Se nós chegarmos ao fim com uma variedade que seja mais resiliente ao calor, esta conquista será para nós um grande sucesso”, diz Sílvia Coimbra. Um êxito que poderá contribuir para alimentar a população global na era das alterações climáticas – e, se assim for, talvez seja aberta mais uma garrafa de champanhe no laboratório da Universidade do Porto.