A habitação e a passividade portuguesa

Na ausência de garantias de verdadeira legislação do mercado da habitação, ou melhoria de condições efectivas, não há também, surpreendentemente, protestos com o grau de indignação apropriado.

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Habitação Nelson Garrido

Que um povo se acostume a um crescimento da população sem-abrigo num centro urbano durante uma crise económica, já é hábito. Que se normalize a miséria de grupos subalternos, já é esperado. Porém, se já é fruto do costume não haver grandes galvanizações face a questões sociais, ditas esperadas, o inesperado é a lenta normalização da condição paupérrima da habitação e consequentemente dos residentes dos centros urbanos.

Num momento em que vemos, como já foi visto, trabalhadores de juntas de freguesia, com rendimentos mínimos na casa dos 700 euros, a viver na rua por carências na área da habitação, seja apartamentos ou quartos, dos quais os últimos apenas aceitam arrendatários de perfil específico, não se compreende como há tão pouca mobilização, seja governamental, seja popular, no que toca a combater a especulação imobiliária desenfreada.

Vejamos Lisboa: à data em que escrevo este artigo, quem abrir o site Idealista verá apenas dois estúdios (T0), no concelho inteiro, até 600 euros. Quem tentar subir o patamar até aos 700 euros verá sete ofertas que incluem os dois estúdios anteriores e apenas dois apartamentos T1. O que se vive em Lisboa, mas não só lá, é o resultado de prioridades estéticas no que toca à exportação de uma imagem de Lisboa que atraia um nicho de investimento abastado, mas que falha na salvaguarda da população residente, cuja existência é sinónima da cidade.

O descontrolo da especulação imobiliária que se tem vindo a observar há já alguns anos, sempre sob a promessa do próximo ano ser aquele em que a bolha rebenta, sem nunca o fazer, requer acção urgente, forte, audaz e destemida. Requer que se aja sem interesses económicos ulteriores, turísticos, de investimento, em primeiro lugar, mas sim que se inverta a prioridade de habitar o verdadeiro núcleo humano e económica da cidade – as pessoas.

Ainda assim, o observável é uma classe política e legisladora que se fica por medidas superficiais e temporárias. Cuja preocupação é a recepção de centenas de milhares de jovens na Jornada Mundial da Juventude (JMJ), uma imagem fabricada de uma cidade que se vê crescentemente degradada economicamente e pessoas cada vez mais desesperadas ou num processo de evacuação. Não bastasse a questão económica e técnica, há ainda um processo de dissociação da liderança política que roça a humilhação.

As palavras de Carlos Moedas em defesa dos custos das JMJ reiteram o estatuto de humilhação da população cujo trabalho carrega a imagem da Lisboa turística: “Ser o centro do mundo tem um valor.” O valor é a expulsão da cidade, se não para as ruas, o valor é um T0 sem condições por valores que rodeiam o salário mínimo ou mais. Há um estereótipo da virtude portuguesa no seu espírito sacrificial e sofredor, mas não é a altura de se escreverem novos fados.

Com isto tudo dito, na ausência de garantias de verdadeira legislação do mercado da habitação, ou melhoria de condições efectivas, não há também, surpreendentemente, manifestações e protestos com o grau de indignação apropriado à realidade da situação. Há um processo de destruição do tecido social e económico em virtude de um mercado especulativo. Todavia, paralelamente, há um processo de normalização desta miséria, mais humilhante que as anteriores. É esse aspecto cultural que deve ser combatido, para que a acção futura e futuros protestos não se limitem a marchas, mas destemidamente ameacem a estabilidade política, sem precisar do desespero a que este contexto nos está a entregar.

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