Bruxelas avança propostas para ultrapassar subsídios dos EUA e reter tecnologias limpas na UE

Plano Industrial Verde prevê nova flexibilização das ajudas de Estado e a reorientação de verbas de programas como o RePower, InvestEU e o Fundo de Inovação para a concessão de benefícios fiscais.

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EPA/STEPHANIE LECOCQ

A União Europeia não quer perder a liderança mundial no processo de transformação e transição da economia para um novo paradigma de neutralidade climática, e, para não se deixar ultrapassar pelos seus concorrentes — sejam eles os aliados como os Estados Unidos da América, ou os rivais como a China —, está disposta a liberalizar, ainda que de forma temporária, as ajudas de Estado para o financiamento das empresas do sector das tecnologias limpas, de forma a conseguir ultrapassar os subsídios atribuídos nesses países.

Mas como nem todos os Estados-membros têm a mesma capacidade e margem de manobra orçamental para financiar directamente esse investimento, Bruxelas vai permitir que possam reorientar os montantes dos empréstimos ainda não utilizados dos respectivos planos de Recuperação e Resiliência para conceder incentivos ou benefícios fiscais às suas empresas em maior risco de deslocalização para outras geografias.

“Os Estados-membros têm este dinheiro disponível e é crucial que o utilizem agora. Nós queremos que estas indústrias de tecnologias limpas fiquem na UE e possam prosperar na UE, sublinhou a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, numa conferência de imprensa de apresentação das linhas gerais do novo Plano Industrial Verde em que Bruxelas está a trabalhar para promover a competitividade da indústria europeia, contrabalançar os incentivos oferecidos pela Administração norte-americana no âmbito do seu gigantesco pacote de medidas para a redução da inflação (conhecido pela sigla IRA), e simultaneamente defender o mercado único das investidas das empresas chinesas que não seguem as mesmas regras em termos de concorrência.

“Quero ser muito clara: os investimentos e as medidas que estão a ser tomadas por outros parceiros para adaptar as suas economias ao objectivo de combater as alterações climáticas são boas notícias e são essenciais. Mas a concorrência tem de cumprir regras e manter-se equilibrada”, sublinhou a presidente da Comissão.

O plano apresentado por Von der Leyen, esta quarta-feira, ainda só tem a forma de uma comunicação, ou seja, trata-se de um documento de trabalho do executivo comunitário, para “estimular e organizar” o debate político entre os dirigentes do Conselho Europeu, na reunião marcada para a próxima semana, antes da oficialização de uma (ou mais) proposta legislativa, em princípio em meados do próximo mês de Março, para ser novamente avaliada pelo Conselho Europeu e depois prosseguir a discussão com os legisladores do Parlamento Europeu.

Como se lê no documento, o “esboço para um novo Plano Industrial Verde baseia-se em quatro pilares: um ambiente regulatório previsível e simplificado; um acesso mais rápido e adequado ao financiamento; a promoção das qualificações e competências; e uma abertura do comércio para [garantir] cadeias de abastecimento resilientes”.

No capítulo regulatório, a Comissão prevê apresentar legislação para a neutralidade da indústria e para as matérias-primas críticas, rever o modelo de funcionamento do mercado da electricidade, acelerar os procedimentos de licenciamento e finalmente incentivar o desenvolvimento de projectos multinacionais, com metas quantitativas até 2030. “Sabemos que sem metas e prazos não é possível medir o sucesso”, referiu Von der Leyen.

Nos capítulos das competências e do comércio internacional, a Comissão acredita que pode atingir os seus objectivos de atracção e aproveitamento de “recursos, talento e experiência” para o mercado laboral, e de “estabelecer novas cadeias de abastecimento e desenvolver produtos inovadores”, sem criar nova legislação — o esforço será político, principalmente no que diz respeito à conclusão das negociações ou a entrada em vigor dos acordos de livre comércio da UE com parceiros como a Austrália e Nova Zelândia ou os países do Mercosul.

É no capítulo do financiamento que os planos da Comissão Europeia são mais controversos e enfrentam maior oposição: mal terminou a conferência de imprensa de Ursula von der Leyen, várias bancadas políticas do Parlamento Europeu deram conta da sua insatisfação e descontentamento com as propostas, algumas das quais já tinham merecido a crítica de vários Estados-membros.

Além de abrir a porta a uma maior flexibilização das ajudas de Estado, através de uma reconversão do enquadramento excepcional que já fora aprovado para enfrentar a crise pandémica e as medidas de apoio à economia na sequência da invasão da Ucrânia pela Rússia, o executivo comunitário quer permitir uma reorientação das verbas do fundo de recuperação Próxima Geração UE, do programa InvestEU e do Fundo de Inovação para a concessão de créditos fiscais, a canalização de investimento e a atribuição de subsídios a projectos das indústrias neutras em carbono.

A experiência deste ano com a flexibilização das ajudas de Estado mostra que 80% do financiamento autorizado, através de garantias ou subsídios, foi para empresas da Alemanha e França. A vice-presidente executiva da Comissão e responsável pela pasta da Concorrência, Margrethe Vestager, garantiu que o futuro “enquadramento de crise e transição” incluirá provisões para “preservar a coesão e salvaguardar as condições de igualdade de concorrência no mercado interno”, mas os Estados-membros desconfiam.

Quanto aos programas e fundos que já foram lançados, o problema é que o dinheiro é sempre o mesmo: a reorientação dessas verbas, seja no contexto do quadro financeiro plurianual ou dos planos de recuperação e resiliência (PRR), significa que haverá menos dinheiro disponível para o financiamento de outros projectos elegíveis para esses instrumentos.

Von der Leyen lembrou, por exemplo, que existem cerca de 250 mil milhões de euros em empréstimos do PRR por utilizar, mas esse montante, que estava destinado aos projectos de recuperação da crise pandémica, é o mesmo que a Comissão convidou os Estados-membros a utilizar para financiar as acções do RePowerEU, criado para apoiar o desenvolvimento de energias renováveis e reduzir a dependência de combustíveis fósseis.

Porém, a principal crítica foi para a proposta de criação de um novo fundo soberano para a promoção de “projectos industriais multinacionais e estratégicos em áreas de tecnologia de ponta”, em que a UE quer ser “um player mundial relevante”, através do financiamento comum. Von der Leyen esvaziou as expectativas dos muitos Estados-membros que reclamam por este novo instrumento (entre os quais Portugal), reduzindo consideravelmente as ambições em termos do seu poder de fogo.

“Teremos de ver o que é possível fazer, no quadro da revisão intercalar do quadro financeiro plurianual, e de discutir com os Estados-membros outras possíveis técnicas de financiamento”, disse a presidente da Comissão, que nem por uma vez se referiu à possibilidade de emissão de nova dívida europeia, como defendem os seus comissários da Economia e Mercado Interno. “Este será um instrumento estrutural de longo prazo”, observou, acrescentando que antes de elaborar um modelo de financiamento, a Comissão tem de “avaliar as necessidades”.

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