“Portugal está mais de uma década atrasado no investimento em investigação”, lembra Marcelo

Presidente da República chamou a atenção para que o investimento na ciência não seja esquecido no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) e no quadro comunitário de apoio Portugal 2030.

GBV Guillermo Vidal 01 de Fevereiro 23 Reportagem Entrega de prémios Vencer o Adamastor com Presidente da República
Fotogaleria
Presidente da República na entrega do Prémio Vencer o Adamastor Guillermo Vidal
GBV Guillermo Vidal 01 de Fevereiro 23 Reportagem Entrega de prémios Vencer o Adamastor com Presidente da República
Fotogaleria
Entrega do Prémio Vencer o Adamastor Guillermo Vidal

O momento era de cerimónia e de premiação: o investigador Gonçalo Correia recebia o Prémio Vencer o Adamastor por um projecto na área da inteligência artificial. Presente nessa entrega, Marcelo Rebelo de Sousa aproveitou para chamar a atenção para um “Adamastor” no país: “Portugal está mais de uma década atrasado em termos de investimento em investigação e desenvolvimento.” O Presidente da República referia-se ao facto de em Portugal a investigação e desenvolvimento representar cerca de 1,7% do PIB e de, já em 2013, a média europeia rondar os 2,6% do PIB investido em investigação e desenvolvimento (I&D). Esse atraso é um Adamastor que tem de ser vencido.

Mas Marcelo Rebelo de Sousa não foi o único a mencionar o “Adamastor” do problema do financiamento em ciência. Na atribuição do prémio, Luís Ferreira, reitor da Universidade de Lisboa, atentou precisamente para essa questão e explicou a necessidade de investimento. “A ciência demora tempo, precisa de um tempo próprio e de um financiamento continuado”, assinalou. “Não se faz a [dar] milhões [de uma só vez] e nos próximos três anos não há. Isso é mortal para a ciência e temos vivido muito esse ambiente em Portugal, ora temos bastante e usamos, ora depois passamos anos de penúria seguidos.”

Luís Ferreira não se cansou de salientar que a ciência pressupõe um ambiente lento, “um ambiente de meditação”, que é uma palavra que vem originalmente do grego e que significa etimologicamente “fazer mel”, notou. “Fazer mel é pegar nas pequenas coisas, metabolizá-las antes de as pôr de novo para o exterior e dar aos outros”, reflectiu. “A ciência faz-se como se faz o mel, com esse tempo necessário e que não pode ser interrompido por um fogo que queimou aquela zona toda [onde estava uma colmeia] ou por uma ausência de financiamento.”

Por isso mesmo, propôs o desafio de olhar para a estrutura de financiamento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT): “Quando olhamos para os recursos humanos e o que se chama ‘relações internacionais’, têm mais de 50% do orçamento e os projectos têm 17%. É exactamente o contrário que tínhamos na década de 90, quando demos o grande pulo em termos de investigação.” O reitor da Universidade de Lisboa propõe que se inverta essa lógica, outra vez.

Foto
O vencedor do prémio Gonçalo Correia Guillermo Vidal

Marcelo Rebelo de Sousa dedicou precisamente uma parte da sua intervenção para abordar a questão do financiamento na ciência. Antes, assinalou a evolução no país: “Nas últimas décadas, no que diz respeito à ciência e educação, Portugal tem tentado percorrer um caminho na direcção certa, com perseverança e que nos conduziu a resultados de destacar.” Um desses resultados diz respeito à população empregada com ensino superior, que é já mais de 30% da população.

Contudo, mais do que apenas observar essa “explosão quantitativa”, que começou com a democratização da sociedade portuguesa no acesso ao ensino superior, o Presidente da República atentou: “É muito mais importante investir em ciência e investigação fundamental; penso no Governo e penso nas empresas.”

Marcelo Rebelo de Sousa lançou assim um repto ao país e propôs que seja “mais afoito, mais determinado, mais exigente, mais competitivo, relativamente a si próprio”, conseguindo reter pessoas altamente qualificadas. Como conseguir tudo isso? Uma das ferramentas será já agora com a execução efectiva do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). “Esta é uma oportunidade única a que o nosso país tem acesso.” Mas essa não deverá ser a única referência para aumentar o investimento em ciência: “A despesa indicativa no PRR para I&D, de pelo menos 2% do PIB até 2025, não reflecte um forte investimento em ciência e investigação e não acompanha as necessidades dos tempos actuais. É preciso olhar para o [quadro comunitário de apoio] Portugal 2030 e garantir a sustentabilidade do financiamento da ciência.”

Um outro “Adamastor” vencido na sala foi o que o anfitrião do prémio fez com o seu projecto. O próprio Gonçalo Correia metaforizou que tentou vencer um Adamastor ao “pegar nos modelos neuronais e tentar torná-los tanto mais transparentes como mais compactos e eficientes e foi feito através de esparsidade”.

O investigador da Priberam propôs um novo método para tornar os modelos de aprendizagem automática mais compactos e eficientes. Por agora, Gonçalo Correia diz que o seu trabalho já teve impactos em artigos que desenvolveram mais métodos com esparsidade, focados na transparência e eficiência que isso traz. Também disse esperar que traga contributos para uma inteligência artificial mais responsável, cuja pegada ecológica é menor, bem como mais transparência. “Espero que muitos dos novos modelos com mais responsabilidade sejam criados no consórcio Center for Responsible AI, agora em Portugal.” Este é um dos maiores consórcios mundiais de inteligência artificial responsável e Portugal passou a integrá-lo recentemente.

Combate a Adamastores

Esta foi a primeira vez que este prémio, que resultou de uma parceria entre o Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores (Inesc) e o jornal PÚBLICO, foi entregue. E o nome não foi em vão, como salientou Arlindo Oliveira, presidente do Inesc: “Há cerca de quatro décadas, o Inesc, na altura uma iniciativa recém-criada de José Tribolet e João Lourenço Fernandes, concebeu o mote ‘vencer o Adamastor’.”

Na década de 80 do século XX, a criação deste instituto tinha “como objectivo ultrapassar o crónico atraso do país em áreas como a ciência, a tecnologia e a educação”, afirmou o seu actual presidente. “Neste caso, o ‘Adamastor’ era o monstro do subdesenvolvimento que caracterizava um país que aparecia destacado na cauda da Europa em muitos indicadores científicos e educacionais. O modelo proposto pelo Inesc, de instituições privadas sem fins lucrativos dedicadas ao desenvolvimento de ciência e tecnologia e inovação, veio a vingar em Portugal.”

Hoje, salientou Arlindo Oliveira, o “país tem um sólido sistema de instituições científicas e muitas delas inspiradas pelo modelo do Inesc”. E deu como exemplo alguns dos feitos actuais dos portugueses: cientistas publicam nas melhores revistas científicas ou competem pelos programas mais competitivos da Comissão Europeia.

Foto
Da esquerda para a direita, Gonçalo Correia com Arlindo Oliveira e Manuel Carvalho Guillermo Vidal

O terreno da ciência é, afinal, propício ao combate de Adamastores. “Todos os dias a ciência vence Adamastores”, assinalou também Rogério Colaço, presidente do Instituto Superior Técnico. “O Adamastor representa o perigo, a dificuldade, a ameaça, o desconhecido. Descobrir é tão-só vir a conhecer o desconhecido e tornar o desconhecido conhecido. Vencer o mostrengo disforme e grande – o Adamastor – mais não é do que vencer o medo do desconhecido. O que é o desígnio da ciência e de quem o faz, os cientistas e os investigadores.”

O “Adamastor” do subdesenvolvimento não se vence sozinho e, ao longo da entrega do prémio, foram várias as intervenções que destacaram o papel do PÚBLICO na luta contra esse “monstro”. Uma das declarações foi precisamente a de Manuel Carvalho, director do jornal: “Desde a sua fundação, entendemos o PÚBLICO não apenas como um jornal que tem o dever de prestar um serviço público na área da informação, mas também se associar a todas as causas que de uma forma clara, inequívoca e positiva estejam ao lado daquilo que são os grandes desígnios do interesse nacional”, disse sobre a parceria com o Inesc para este prémio. A ciência é um desses interesses e, por isso, o jornal tem vindo a dar destaque ao jornalismo de ciência no país: “Temos uma longa tradição no jornalismo de ciência em Portugal. Somos o único jornal que tem uma editoria de ciência reconhecida nacionalmente.”

O mesmo foi assinalado por Marcelo Rebelo de Sousa, notando que o PÚBLICO, à sua maneira, também vence todos os dias Adamastores e frisou: “É extraordinário verificar que tem uma secção dedicada especialmente à ciência e ao ambiente, conferindo um papel central ao conhecimento, à educação, à qualificação e à inovação.”

Sugerir correcção
Ler 5 comentários