A democracia exige um contínuo estado de alerta

Sem dúvida, não podemos descansar. A democracia exige um contínuo estado de alerta. A História tem-no demonstrado e parece que teimamos em ignorá-lo.

A riqueza provém de um conjunto de pobrezas.
Séneca (4 a.C. – 65 d. C.), Cartas a Lucílio

Poucos dias antes do Natal, numa conversa com a minha filha mais velha, ouvi pela primeira vez, confesso, a pavorosa história da rã fervida[1] que metaforicamente elucida à perfeição, assim o constatámos, um sem-número de vivências humanas em que as vítimas, sob o olhar e o gesto de alguém, chamemos-lhe cinicamente “cuidador”, vão lentamente soçobrando como acontece às rãs. Nessa indiferença por uma morte lenta, metafórica, não forçosamente física, mas interior, espiritual, reconhecemos a resignação que acomoda, a obediência acrítica que permite sermos conduzidos, alheando-nos do nosso próprio bem-estar, a incapacidade de nos libertarmos, devido a excesso de cansaço ou de medo. Sinais ajustados às características de uma síndrome que o “cuidador” bem sabe explorar, seguro dos bons resultados que advirão para si ou para aquele que o “compra” ou para ambos.

A rã, longe do seu habitat, no cubículo onde a puseram em água fria, habituando-se ao seu aquecimento gradual, não reagirá, saltando, nem mesmo quando a água estiver a ferver, deixando-se morrer passivamente. Ela própria contra si própria, muito à semelhança do funcionamento de uma doença auto-imune em que o sistema imunitário, caracterizado pela sua função protectora, ataca inexplicavelmente as células do próprio organismo, confundindo-as com “agentes invasores”, o que provocará o caos e a destruição.

A propósito da história contada, que reflecte situações em que a auto-destruição ou a alienação são fomentadas, foco-me em dois exemplos:

1. Os partidos populistas e a sua íntima adesão à ideologia nazi, bem visível na “vista grossa” à temível saudação ou ao uso da cruz suástica, em comícios ou em encontros, ou no ódio ostensivo aos ciganos ou aos migrantes, são um exemplo de quem alimenta o intenso desejo de cuidar de si, cuidando dos outros, ora martirizando ora alienando na “cozedura”. E assim se vai constatando, eleição após eleição, como no caso português, a crescente substituição de votos comunistas ou social-democratas pelos de extrema-direita, engrossando-se assim o número de deputados do Chega, figuras que interiorizaram tiques de sedução, já sobejamente batidos, mas que, inexplicavelmente, têm o seu efeito.

Daí a imagem de bom católico que o líder deseja passar, ostentando participações, gestos e objectos religiosos, esquecido, porém, do que deveria conhecer, mas ignora, como as palavras de Cristo a propósito dos “Fariseus”, no Evangelho de Mateus, 23. A transcrição será um pouco longa, mas vale a pena a sua leitura: Tudo o que fazem é com o fim de se tornarem notados pelos homens. […]. Gostam de ocupar o primeiro lugar nos banquetes e os primeiros assentos nas sinagogas […]. Ai de vós, doutores da lei e fariseus hipócritas, que percorreis o mar e a terra para fazer um prosélito e, depois de o terdes seguro, fazeis dele um filho do inferno, duas vezes pior do que vós! […]. Ai de vós, doutores da lei e fariseus hipócritas, porque sois semelhantes a sepulcros caiados: formosos por fora, mas, por dentro, cheios de ossos de mortos e de toda a espécie de imundície! Assim também vós: por fora pareceis justos aos olhos dos outros, mas por dentro estais cheios de hipocrisia e de iniquidade.

Tal como a Alemanha nazi recebeu o apoio clamoroso dos grandes empresários que foram determinantes na campanha de Hitler em 1933, alimentando posteriormente uma “época de horrores” e a guerra planeada, e sendo escandalosamente determinantes para o Holocausto, também se sabe que o Chega é protegido por grandes empresários e homens de negócios – o que acontece certamente com todos os partidos de extrema-direita da Europa. Conforme se pode ler na investigação feita pela Revista Visão, todos unidos para ajudar “a tornar o Chega maior” (Posser de Andrade): “Do universo BES ao Banif. Do negócio das armas à aviação. Do imobiliário aos escritórios de advogados”.

Neste diálogo entre apoiante e apoiado, seja no singular ou no plural, o verbo cuidar e o substantivo excesso são naturalmente recíprocos: uns cuidam do seu dinheiro, aumentando-o em avalanchas sucessivas de lucros, constituindo grandes fortunas que perduram no tempo, mesmo quando à custa da barbárie, que lhes é indiferente; outros cuidam de impor essa mesma barbárie, mesmo que “doce”,[2] ou seja, sem violência física, recebendo de mão beijada todas as ajudas de custo e as benesses forçosamente consequentes. Engrossam o apoio destes “outros” não só os que, sem escrúpulos, não perdem a oportunidade de “subir” e iniciar “carreira” política, mas também os ingénuos que, abdicando de pensar, se deixam facilmente conduzir, adoptando por vezes comportamentos agressivos, ou ainda os que cansados de promessas vãs se convencem que chegou, finalmente, o salvador da pátria. Incapazes de dar o “salto”, deixam arrastar-se, estes dois últimos grupos, no “diz-se, diz-se”, ignorando quão ignobilmente estão a ser usados.

Em A Ordem do Dia, de Éric Vuillard, relata-se, com precisão, a reunião secreta de 20 de Fevereiro de 1933, em Berlim, entre “vinte e quatro lagartos” erguidos “nas patas traseiras”, Hermann Göring, presidente do Reichstag, e o “sorridente” e “descontraído” Hitler, tendo em vista a vitória deste último a 5 de Março. Perceber-se-á que o discurso proferido e reiterado pelos hospedeiros foi o que os 24 empresários (os tais “lagartos”) desejariam ouvir, nomeadamente sobre a “ameaça comunista”, a “supressão dos sindicatos”, “o fim de eleições”, em suma, tudo o que os opressores do mundo consideram vital para atingir e manter-se ad aeternum no poder, com o apoio de quem tem o hábito de alimentar fortunas com a miséria dos outros. [3] Uma reunião que, sendo secreta, traduz o hábito promíscuo de “políticos e industriais se frequentarem”, estando servilmente ao serviço uns dos outros.

Exemplo disso, e nos dias de hoje, foi o almoço realizado a 18 de Junho de 2020, na Quinta do Barruncho, entre um grande número de homens de negócios e André Ventura, acompanhado de Diogo Pacheco de Amorim. Ontem como hoje e obviamente no futuro, não tenho qualquer dúvida. Está arraigado nos investidores o gesto de “luvas e pagamentos por baixo da mesa” porque “a corrupção é uma rubrica incompreensível do orçamento das grandes empresas, a que se dá vários nomes, lobbying, prendas, financiamento dos partidos.” (op. cit.)

Calem-se os que continuam a defender, invocando inclusive a sua experiência, que as grandes fortunas são fruto de muito e muito trabalho. Sem dúvida que implicará trabalho, mas um trabalho “homicida”, alimentado pela ganância de sistematicamente enganar e explorar, maltratando e destruindo a vida das vítimas. E quando dificilmente acontece a ida a um tribunal, repetem-se as justificações já fastidiosamente conhecidas: “não se lembram”, “não têm ideia”, “foram coagidos a…”, “obedeciam a ordens” e outros etc. repelentes. Está na sua natureza, alheia à rectidão. Na verdade, os pequenos roubos são punidos, os “grandes exibidos”. E a tragédia está em que partidos democráticos continuam irresponsavelmente a negligenciar a corrupção, bem como a facilitar a proliferação de “cuidadores”, quantas vezes saídos do seu seio, alimentando assim, e exponencialmente, um discurso demagógico e alienatório.

Sem dúvida, não podemos descansar. A democracia exige um contínuo estado de alerta. A História tem-no demonstrado e parece que teimamos em ignorá-lo. Estão vivas as palavras de Klaus Mann, filho do escritor Thomas Mann, em 1931: A psicologia permite-nos compreender tudo, até as pauladas, mas eu não quero praticar esse tipo de psicologia.

2. Quem souber parar e olhar para os “estafetas” que esperam junto às entradas de restaurantes, ou circulam de moto, de trotinete ou, penosamente, de bicicleta, pelas ruas de Lisboa, de dia e de noite, com pesadas mochilas às costas, sob chuva e vento impiedosos ou à torreira do sol, não poderá ficar indiferente à reflexão que a situação exige, devido às questões éticas que implica, nomeadamente a ausência de um contrato de trabalho ou de um horário definido ou de férias pagas ou de qualquer subsídio, como o de Natal. As plataformas digitais – Uber Eats, Take Away, Bolt ou Glovo – são as que “cuidam” dos “estafetas”, apoiadas em intermediários, contando certamente com a lentidão do poder na resolução da situação laboral.

Alma avara, nenhum lucro a sacia, máxima do poeta latino Publílio Siro, 85 a.C.-43 a.C., espelha a postura das multinacionais e dos intermediários, insolentes e arrogantes por natureza, que devem agora sentir-se preocupados com a inesperada reacção e a persistência dos que se recusam a aguentar por mais tempo a “fervura da água”. Com efeito, os “estafetas” saltaram em protesto, numa “Folga Colectiva” que aconteceu em Abril de 2022, no Porto, exigindo, entre outras coisas, que o valor por quilómetro fosse aumentado.

A este propósito, e mais recentemente, fruto porventura de desnorte, tal o absurdo, foi divulgado pelo jornal Público a “Carta-aberta do Movimento de Estafetas ao Governo”, cujo texto é de tal modo inconcebível que só poderá ser compreendido à luz de alguém que, alienado e habituado a mentir, receia a perda futura de lucros que a regulação venha a determinar. No fundo, são os próprios estafetas que, em lugar de se revoltarem contra a exploração de que são alvo, se voltam contra si próprios, agredindo e desvalorizando os seus direitos e propagando o desejo de viver escravizado e protegido pelos “cuidadores”. Uma estúpida anedota de humor negro a que José Soeiro respondeu de imediato e inteligentemente.

Presume-se que em breve novas regras alterem o trabalho em plataformas, incidindo sobre contratos de trabalho e acidentes de trabalho, proibição de despedimento sem justa causa, dias de férias, salário mínimo, limites ao período de trabalho, bem como fiscalização do sector. Direitos de que estes trabalhadores-estafetas estão privados e que, no entanto, deveriam ser norma em todo o mercado de trabalho. Na verdade, é imprescindível “saltar” e não esperar que nos aniquilem pelo cansaço e pela resignação.

A terminar, e perante a acção em força dos professores contra uma escola-depósito de alunos e um ministério que há longos anos tem “cuidado” de nós, adiando a resolução de problemas, desrespeitando os professores e os seus direitos e menosprezando a qualidade do Ensino, manifesto aos Colegas a minha total solidariedade e gratidão. Os alunos compreenderão seguramente esta luta que é igualmente por eles.


[1] A descrição e a sua interpretação aparece na obra The Fifth Discipline (“A Quinta Disciplina”), do norte-americano Peter Senge, cuja primeira edição data de 1990.

[2] Adjectivo usado e explicado por Jean-Pierre le Goff no seu livro, La Barbarie Douce – La modernization aveugle des entreprises et de l’école.Éditeur – La Découverte, 2003.

[3] Éric Vuillard documenta-o, exemplificando empresas alemãs, como, por exemplo, Krupp Ag (actualmente ThyssenKrupp AG), Bayer, IG Farben (extinta em 1952), Agfa, Shell, Opel, Schneider, Telefunken, BASF, Siemens, Allianz, que usaram nas suas fábricas mão-de-obra escrava de civis, prisioneiros de guerra e judeus dos campos de concentração, servindo-se ainda destes últimos como cobaias na testagem de novos medicamentos e vacinas (IG Farben, acusada também de desenvolver o gás Zyklon, tendo sido muitos dos seus dirigentes julgados no Tribunal de Nuremberg). In A Ordem do Dia, Prémio Goncourt 2017, trad. João Carlos Alvim. Lisboa, D. Quixote, 2018.

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