Mara Mures já pedalou dez mil quilómetros: “A ideia é voltar a casa um dia”

Saiu de Bajouca, Leiria, a 3 de Fevereiro de 2022 e ainda anda pela América do Sul a pedalar, a pintar e a escalar. O seu 2022 “foi brutal”. E 2023? Só sabe que “o plano ainda não é voltar”.

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"O plano ainda não é voltar" Mara Mures
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Desenho do caderno de viagem Mara Mures
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Desenho do caderno de viagem Mara Mures

"Estou dentro da minha tenda, já jantei, são 22h10 e faz muito vento. Estou sozinha. Saí de Portugal sozinha, mas nunca me senti verdadeiramente só. Cruzo-me sempre com alguém que está a seguir o seu caminho enquanto eu sigo o meu. É interessante pensar nestas probabilidades improváveis de me cruzar com alguém nesta viagem, tudo é um pouco imprevisto e aleatório. Acontecem encontros e desencontros. Enquanto pedalo ouço música e à noite a companhia do Bob Dylan não falha." A reflexão foi desenhada a 28 de Abril de 2022. É uma entrada de um diário, que é um caderno de pinturas, que guardam para todo o sempre o último ano de Mara Mures, uma aventureira que saiu de Bajouca no dia 3 de Fevereiro do ano passado e que continua a pedalar — já lá vão dez mil quilómetros pelo Sul da América do Sul. "A ideia", diz à Fugas, "é voltar a casa um dia".

No caderno — que já são cadernos, que são autênticos murais —, no diário, no fio condutor do Instagram e na memória de Mara Mures, que adora abrir cadernos alheios, vão-se aconchegando paisagens sem nada — onde "o nada é relativo: há vento, animais e casas abandonadas de vez em quando" — e pessoas, rochas (coleccionadas e escaladas) e argila moldada, pequenas avarias que dão grandes histórias (primeiros mil quilómetros: dois furos, quadro partido, suporte partido, cabo das mudanças partido), cabos de travão usados até ao limite, sonhos e dilemas ("pintar, escalar ou pedalar?"), noites na tenda abrigada do vento que atira pelo ar as placas de sinalização e faz voar o caderno das mãos. Já agora, uma prece à "virgen de los ciclistas" e dias e dias "re-lindos" a pintar de luvas, que não evitam que as mãos enregelem uma vez e muitas vezes.

Com 25 anos, Mara Mures — na verdade, esse é o nome artístico adoptado por Mara Marques, que fez voluntariado na província de Maramureş, na Roménia — comprou o voo de ida (Lisboa-Madrid-Buenos Aires) com o plano furado de voltar três meses depois à sua aldeia no distrito de Leiria. O "sonho" era "pintar as montanhas da Patagónia" e ver como lidava com o frio, com o calor e com a solidão sobre rodas. Mara tinha feito Erasmus na Polónia, tinha viajado pela Europa e tinha pintado muito na Islândia. De bicicleta percorrera a estrada 222 no Douro durante uma semana. "'É pouco. Quero aventurar-me mais'", recorda a artista, que se deixa inspirar por "coisas diferentes". "E a viajar estamos sempre expostos a isso, à inspiração constante."

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Já lá vão dez mil quilómetros pelo sul da América do Sul Mara Mures

A Fugas conheceu-a em plena aventura, algures no Paraguai. "Onde, mais precisamente?", perguntámos através de uma videochamada. Mara olha em redor e sorri antes de responder: "Numa estação de serviço ao pé da estrada." Conversámos mais de meia hora à distância de nove mil quilómetros, entre Portugal e a tríplice fronteira, ali entre a Argentina, o Brasil e o Paraguai — Mara "mais ou menos" a apontar em direcção à Bolívia. "Tenho alguns pontos no mapa por onde quero passar, mas vou indo assim com liberdade para escolher..."

Estava a trabalhar numa olaria na sua "terra", a fazer pinturas e murais, quando decidiu tirar o pó a uma bicicleta que o pai, Rafael, comprara a uma vizinha e usara para viajar até ao Algarve ou até Santiago de Compostela e voltar. "Ele tem um espírito muito aventureiro, dorme em qualquer lado, sem tenda, nem nada. Eu tenho um bocado essa pancada dele. Sempre foi um ídolo para mim", confessa Mara, que sempre se sentiu "muito inspirada por toda a gente que viaja de bicicleta".

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O "sonho" era "pintar as montanhas da Patagónia" Mara Mures

Rafael ensinou-lhe a mecânica básica e a aprendiz vai-se tornando mestre por força do caminho e do contacto com outros viajantes — com os argentinos, por exemplo, que "põem uma caixa de fruta na bicicleta e vão viajar". "Vou aprendendo o mantenimento [risos]... o meu português já está assim... ter sempre a corrente limpa, trazer sempre cabos e algumas peças. Já se partiu muita coisa, mas dá sempre para dar a volta."

Está quase a fazer um ano. Aterrou, apanhou um autocarro até Mendoza e daí seguiu a Ruta 40 pela cordilheira até Ushuaia, onde cruzou para Punta Arenas, Chile, Carretera Austral acima e de volta a Esquel, Puerto Madryne para ver e desenhar baleias, de volta a Buenos Aires, de barco até Colónia de Sacramento, Uruguai, Montevideo, Aceguá, no Brasil, e de volta à Argentina, Puerto Iguazú ("A Argentina começou a ser um refúgio, lá sinto-me super-segura"). "Vou estipulando pequenos objectivos. Vou andando e pedalando. Paro duas noites no máximo em cada lugar e quando chego a esse sítio onde quero pintar, fico o tempo que me apetecer." No resto, é "pedalar a fundo" e acampar "sempre que possível à borla", vender online desenhos em guache e, pelo caminho, pintar murais aqui e ali — em terra de muralistas quem tem arte é rainha — depois de "mostrar os cadernos para quebrar o gelo". A pintura é uma boa parte da viagem. "É o contrário de ir ver a Torre Eiffel, tira umas fotos e ir embora. Quando estou a pintar uma montanha, assisto às mudanças e interiorizo um pouco da paisagem."

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"A viajar estamos sempre expostos à inspiração constante" Mara Mures

"Cada um viaja à sua maneira", atira Mara Mures. "De bicicleta tens tempo para tudo, para perceber como a cultura daquele sítio funciona. O turista vai saltando e não consegue ver os detalhes mais pequeninos." O mais importante, sublinha, "é sair". "As pessoas têm medo do desconhecido. O que dá nas notícias não é a realidade. O que se vê na televisão é um mundo que não existe."

O mundo do seu 2022 "foi brutal". "Foi um ano incrível... Passou rápido. Acontecem tantas coisas em tão pouco tempo... Vou escrevendo para ver se não me esqueço. O que me causa alta felicidade é quando volto a encontrar-me com uma pessoa três meses depois. É logo a tua melhor amiga." E são normalmente do sexo masculino os cicloviajantes com quem se cruza. Desmistificar parte 1: "Que as mulheres são livres e com força para tudo!". Desmistificar parte 2: "Que quem não come carne não tem força." Desmistificar parte 3: "Pedalar sozinha é fixe. Não vou com a obrigação de acompanhar ninguém."

Pedalada a pedalada, a cabeça de Mara divide-se entre as saudades e o pensamento "já que cá estou, fico mais tempo". Diz que "o plano vai mudando", que quer muito "voltar às montanhas", pintar na Bolívia e no Peru. E Portugal? "Bilhete de avião não tenho. Incrível era voltar de barco. O plano ainda não é voltar."

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Acampar "sempre que possível à borla" Mara Mures
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