Teatro e Censura no Portugal dos pequeninos

O fundamentalismo estético e ideológico de ontem e de hoje “matou antes de nascer” muitas obras, muitos dramaturgos, muitos projectos. E continua a fazê-lo.

Querendo a Assembleia da República comemorar os 50 anos do 25 de Abril, lembrei-me que seria da maior justiça que essa celebração sobre a Liberdade e a Democracia contemplasse o nosso século XVI dando palco a autores e obras que a Censura Inquisitorial suprimiu através dos sucessivos Índices proibitórios e expurgatórios, tanto mais que a censura continua, embora com outros contornos.

A obra dramática dos autores quinhentistas foi absolutamente condicionada pela acção da Censura e pelos Índices Inquisitoriais. Logo no primeiro Rol de Livros Defesos em vernáculo, de 1551, foram “expostos no pelourinho” sete autos nacionais, todos de Gil Vicente.

Raul Rêgo, Sousa Viterbo, I. Révah e Eugenio Asensio, entre outros, ocuparam-se do assunto. António José Saraiva diz-nos que o censor se chegava a sentar com o autor, e propunha cortes na obra, emendas, ou até novas formulações do seu próprio agrado, com resultados por vezes hilariantes e paradoxais. O censor tornava-se assim numa espécie de co-autor.

Naturalmente que a sanha censória se tem vindo a mascarar com outras roupagens, contudo tem continuado a ser exercida por pequenos decisores que, a coberto de interesses particulares, partidários e endogâmicos, têm tomado de assalto as instâncias culturais e artísticas.

O censor do nosso tempo actua cautelosamente num clima de expressivo nevoeiro, e só se senta com alguns, naturalmente com aqueles que já conhece e de quem gosta. Aos outros, que não pertencem à mesma família ideológica ou estética, o censor, mediante o tipo de formatação das questões que são formuladas nas candidaturas, e dos critérios – temáticos, estéticos, ideológicos e organizativos – a que se deve corresponder a priori para se obterem os apoios, o censor, dizia, condiciona a liberdade artística e os processos de criação. Já para não falar das apreciações facciosas dos júris convidados, e/ou dos funcionários que sem consciência crítica de serviço público exaltam nuns grupos os mesmíssimos aspectos e características que depreciam noutros.

Recentemente, J. M. De Bujanda escreveu acerca da Inquisição portuguesa, da Censura e do controle dos livros, especialmente sobre a censura preventiva, e sobre a existência de uma tripla censura: Inquisitorial, Episcopal e Civil.

Qual terá sido o impacto destes três filtros sobre a produção intelectual nacional? Qual a influência da censura prévia na impressão, na quantidade e na qualidade das obras publicadas? Que relação se poderá estabelecer entre a censura prévia e a auto-censura? Que consequências terão infligido no eclodir de ideias novas e na própria criação?

Do mesmo modo, no nosso devir teatral contemporâneo, a diversidade temática, dramatúrgica e estética não é apreciada, nem valorizada, nem apoiada pelos poderes públicos. A tripla censura continua: Institucional – o tipo de concursos de apoio da DGArtes (que não faz nenhum tipo de diferenciação entre a diversidade dos projectos teatrais, nem tem qualquer visão de promoção dos dramaturgos nacionais e da dramaturgia portuguesa de todos os tempos, e nomeadamente do Teatro Clássico Português); Tribal – constituída por grupos que apenas se reconhecem a si próprios (e que praticam exclusivamente as mesmas estéticas e ideologias); e Comunicacional – ou seja, mesmo que uma companhia de teatro, sem qualquer tipo de apoios do Estado, consiga realizar um projecto teatral de qualidade, este dificilmente tem a visibilidade que deveria e mereceria ter, porque, de um modo geral, os meios de comunicação social, divulgam preferencialmente apenas alguns projectos artísticos apoiados pelo Estado, ou manifestamente comerciais.

De facto, o maior inimigo do teatro português ao longo do tempo tem sido uma ortodoxia fundamentalista, que apenas aceita um modo exclusivo de fazer as coisas e de dar a ver apenas aquilo que defende, e que através dos séculos tem empobrecido cultural e artisticamente a sociedade portuguesa, sonegando-lhe o seu legado teatral, que deveria ser preservado e mantido de forma dinâmica, dialogante e criativa, em permanente contacto com todas as gerações, como fazem os ingleses, os franceses e os espanhóis, entre muitos outros, com o seu património teatral.

O fundamentalismo estético e ideológico, artístico e teatral, de ontem e de hoje “matou antes de nascer” muitas obras, muitos dramaturgos, muitos projectos. E continua a fazê-lo! Contudo, as obras resistem, procuram quem as ama, reclamam palco, luz, público.

Vejamos a título de exemplo: A Comédia Aulegrafia de Jorge Ferreira de Vasconcelos, estreada e aplaudida pelo público em Julho passado, no Claustro do Convento da Graça, dá-nos em chave de teatro toda a sociedade portuguesa com seus vícios e virtudes, uma galeria de figuras teatrais poderosas, onde agudeza e inteligência, humor e ironia se combinam, no seio de uma corte asfixiante, onde a ausência de mérito e a corrupção entram pela porta principal.

Os temas são intemporais. Muitos deles coincidem com objectivos da Agenda de 2030, nomeadamente quanto à situação da mulher. Denunciam-se a sua dificuldade de acesso à educação, o abuso e ausência de direitos, como é o caso da Comédia do Cioso de António Ferreira, ou a misoginia e o assédio sexual por familiares próximos, a que se junta a condenação sem provas e a feliz libertação da protagonista através da sua própria acção, como é o Auto de D. Florença de João de Escobar, ou a mudança considerável sobre a visão do Outro, como acontece no Auto de Dom Luís e os Turcos. Estes são apenas alguns exemplos de um corpus com 150 peças, só do século XVI.

Através do Teatro, estes dramaturgos transportam-nos até às grandes questões do seu tempo, que continuam a ser questões do nosso. Nesse sentido, são nossos contemporâneos e têm lições imperdíveis para este nosso presente tão e incerto.

Falar aqui do Teatro Clássico Português do século XVI e da Censura que sobre ele se abateu e se abate, é criar uma analogia mais que pertinente já que embora os processos sejam diferentes, têm resultados similares, pois omitem, encobrem e suprimem a sua concretização.

Precisamente, falarei dos dois projectos/criação apresentados a concurso dos bienais 2023-2024 pelo Teatro Maizum: A Tragédia do Príncipe João de Diogo de Teive, obra escrita em 1554 nunca representada, e que inaugura a tragédia clássica portuguesa, e Gil Vicente em Bruxelas que retrata a censura que se abateu sobre Gil Vicente após a apresentação de um Auto seu nessa cidade, no ano de 1531.

Lê-se na acta do júri que é “um projecto dos mais diferenciados no panorama português – o teatro clássico português –, com ele a companhia propõe desafios singulares e posiciona-se com uma centralidade merecida”.

Até aqui faz justiça ao trabalho desenvolvido e apresentado, mas, eis que, no que concerne à pertinência da encenação da Tragédia do Príncipe João de Diogo de Teive, é referido que “Sobretudo seria necessário aprofundar os méritos ou oportunidade de a produzir hoje, além da divulgação do teatro clássico português, (o que tem um valor cultural em si mesmo, mas não necessariamente de criação)”.

Neste parecer condenatório à representação da obra, o júri reflecte uma falta de atenção e de competências de leitura muito graves. Primeiro, está tudo explicado na candidatura; segundo, há bibliografia publicada sobre o assunto (Veja-se Silvina Pereira, Dramas Imperfeitos, 2017); terceiro, a obra está publicada na Imprensa Nacional e foi anexada uma carta da tradutora (do latim para português) enaltecendo o projecto, a direcção e a competência artística de quem se propõe realizá-lo.

Este parecer, mais propriamente esta opinião, é baseada então em quê? Em não passado? Em criações não realizadas? Em méritos não provados? Em ausência de competências artísticas e académicas manifestadas? Em currículos não comprovados?

Mais, se esta obra dramática não serve enquanto “Criação”, serve para quê? Para adorno? Para estar esquecida nas estantes das bibliotecas? Para não ser teatro?

Se algum dia uma equipa de investigação reunir um grupo de investigadores idóneos que se dedique a analisar criticamente os processos dos concursos de apoio da DGArtes e particularmente as avaliações dos júris e os “pareceres” dos serviços, constatará, salvo raras excepções, as tremendas contradições, as escandalosas apreciações, os favoritismos e as narrativas justificadoras de uma discriminação inaceitável.

O Ministério da Cultura deve ter uma visão abrangente e estabelecer prioridades do ponto de vista cultural, artístico e educacional fomentando, no caso do teatro, a diversidade e promovendo os dramaturgos e a dramaturgia nacional de todos os tempos.

Uma Direcção das Artes que faz escolhas de acordo com determinado gosto e moda vigente, que tem dois pesos e duas medidas, que não acautela a diversidade da criação, e que não se baseia no trabalho desenvolvido e nos pareceres dos seus funcionários que fizeram o devido acompanhamento, não é um interlocutor confiável.

O Teatro Maizum tem vindo a promover ao longo dos seus quarenta anos de existência e actividade ininterrupta a cultura e a dramaturgia portuguesa.

Somos a única companhia no espaço lusófono a investigar, a promover e a representar o Teatro Clássico Português.

Em Julho de 2022 apresentámos, entre outros, a Comédia Aulegrafia de Jorge Ferreira de Vasconcelos, em estreia absoluta, no Claustro do Convento da Graça, em Lisboa, com enorme sucesso, durante três semanas, com o apoio da CML e da DGArtes, e em Novembro a 7.ª edição dos Clássicos em Cena uma trilogia dedicada à tragédia clássica portuguesa.

Neste último concurso bienal da DGArtes não fomos apoiados. O júri não viu qual o interesse em dar continuidade a este projecto de tornar contemporâneo o Teatro Clássico Português, as obras dos dramaturgos portugueses do século XVI, do nosso “século de ouro”.

Seria impensável um júri, se existisse, recusar um Shakespeare, em Inglaterra, ou um Molière, em França, ou um Lope de Vega, em Espanha.

Em Portugal, como diria Luís de Camões, “quem não conhece a arte não a estima”.

Vale!

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