Ética e publicidade

A disputa entre as três principais operadoras é uma das mais renhidas no mercado publicitário e, talvez por essa razão de intensidade, os argumentos exibem agora dimensões humanitárias.

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Imagem do vídeo She, un cuento de J&B no YouTube

As marcas de que nos servimos no dia-a-dia desejam-nos feliz aniversário, feliz Natal, um próspero ano novo e oferecem-nos, a cada ocasião, descontos e promoções personalizadas. Estão agradecidas por nós existirmos e desejam ardentemente que sejamos utilizadores fiéis. Entre as empresas mais empenhadas em nos tratar bem, estão as três rivais nacionais em telecomunicações, das quais em geral é mais difícil separarmo-nos do que desfazer um casamento. Se quisermos partir para outra, temos de apresentar razões: “O serviço falhou uma série de vezes; o repetidor de sinal teve de ser trocado e obrigaram-nos a pagá-lo; a box tinha manias.”

A empresa, perante as nossas queixas, diz que são problemas do passado, que o hardware e o software melhoraram; que se renovarmos o contrato dão-nos os TvCine e um repetidor gratuitos, e ainda substituição da box. E quando hesitamos, recordando aquela vez em que estivemos 15 dias sem Internet porque houve um “problema na zona”, a operadora responde como se de um caso de violência doméstica se tratasse: foi uma falha lamentável, uma vez sem exemplo, foi uma crise do sistema, não se voltará a repetir, asseguram-nos.

O tom é pesaroso, mas ligeiramente irritado: como ousamos reduzir a sua extraordinária performance a uma falha extemporânea, de incidência tão rara? E nós, tipo cônjuge codependente, lá voltamos a acreditar, na certeza porém de que, mesmo que nos voltem a falhar, temos pelo menos os canais TVCine à borla e uma box de último grito.

A disputa entre as três principais operadoras em território nacional é uma das mais renhidas no mercado publicitário e, talvez por essa razão de intensidade, os argumentos exibem agora dimensões humanitárias.

A verdade é que, não existindo diferenças assinaláveis nos pacotes oferecidos pelas três operadoras, o que passa a estar em causa é o recorte identitário e a “onda” das empresas, que, assim, se procuram diferenciar através de causas sociais.

A NOS lança a campanha “Neste Natal, ofereça atenção” e produz um anúncio que, com algum virtuosismo formal, resume a vida a um carrossel de altos e baixos, em que se sugere que as ligações móveis podem constituir um apoio valioso nos momentos mais difíceis. A operadora estabelece o acesso direto à linha gratuita da Associação SOS Voz Amiga, “num complemento ao trabalho extraordinário que a Linha SOS Voz Amiga leva a cabo há mais de quatro décadas, e que permanecerá em funcionamento enquanto se revelar útil para a Associação” – dizem os responsáveis pela campanha. Tendo em conta que a Associação Voz Amiga recebeu em 2021 mais de 10 mil chamadas, a campanha da NOS pode fazer sentido e surtir efeitos práticos.

A Meo, por sua vez, aposta na campanha "Há Natal nas diferenças", em que crianças que não acreditam no Pai Natal se opõem às que acreditam, em manifestações de rua que mimetizam a luta estudantil pelo ambiente. Dizem os responsáveis pela campanha: “A liberdade de pensamento, de consciência, de religião, de expressão e de opinião são direitos humanos, direitos de todos.” O slogan é: “Todos temos direito às diferenças e que isso não faça diferença.” O anúncio é algo confuso e acaba por baralhar o direito à diferença com relativismo moral, mas adiante.

A Vodafone investe na saúde mental e, num anúncio bem filmado, a Rita, porque perdeu o telemóvel, acaba por salvar um jovem deprimido, de olhos doces. Afirma a operadora que, “segundo a Organização Mundial de Saúde, um em cada sete jovens e adolescentes no mundo sofre de um problema de saúde mental. (...) Se sentes que estás a viver um problema de saúde mental, dá o primeiro passo em #PartilhaOQueEstásASentir. Se a campanha cuidar de uma vida que for, terá valido a pena.

A tendência estende-se a outras marcas e outros setores de atividade comercial. Em Espanha, a marca de whisky J&B produziu um anúncio de Natal – "She, un cuento de J&B" – que está a “fazer chorar a Internet”, com 6 milhões de visualizações.

O anúncio – sim, comovente –, para além de se ter tornado viral, gerou um número recorde de comentários, alguns de ódio, que suscitaram uma resposta solidária. "De acordo com dados do Ministério para a Igualdade de Espanha, para 77% das pessoas "'trans' ou não binárias, a família foi o cenário mais difícil no seu processo de transição*. (...) Ana, a protagonista, é interpretada por uma artista "trans", multidisciplinar, Ella Di Amore, nascida em Zaragoza há 26 anos. Na J&B, queremos desejar a todos um feliz Natal, em harmonia, paz e acima de tudo, respeito.” O slogan: “Hay ganas de celebrarnos.”

Dado que todo o espaço público de comunicação está tomado pela publicidade, acreditemos por momentos que é do setor comercial privado que vêm os indicadores máximos da nossa humanidade. Se a publicidade quiser chamar a si essa responsabilidade, terá de se empenhar a sério e por inteiro na incumbência e não apenas quando dá jeito ou fica bem no perfil identitário das empresas ou serviços que promove.

Reconheçamos que é apenas desejável que a publicidade se oriente por valores onde entram em linha de conta os direitos humanos, indicações da OMS ou dados governamentais. Não deixa de ser lamentável que, simultaneamente, a União Europeia não disponha de diretivas, orçamento, criatividade e vontade política para lançar campanhas de literacia sobre os direitos humanos, fazendo-o sem nos vender nada em troca. Essas tarefas não deveriam estar apenas nas mãos de interesses económicos, que tanto podem acertar como errar as campanhas, uma vez que acertar é apenas um bem colateral do ato principal de vender.

Nas campanhas publicitárias de outro setor impactante, o da alimentação, está muito por fazer e regular. Um trabalho de investigação de 2020 da Universidade do Porto, “Avaliação da publicidade alimentar dirigida a crianças em Portugal na televisão e Internet”, assinala que, em Portugal, 65,6% da publicidade a produtos alimentares destinados a menores de 16 anos está em incumprimento com a “Lei n.º 30/2019, que restringe a publicidade a alimentos com elevado valor energético, teor de sal, açúcar, ácidos gordos saturados e ácidos gordos trans”.

Esta lei e outras linhas orientadoras seriam uma desgraça para as pessoas que gostam de comer – que somos todos nós –, mas a boa notícia é que existem hoje produtos alimentares que respeitam leis e linhas orientadoras sem perda de sabor e sem redução de prazer, à venda em todas as grandes superfícies do país.

A Milaneza deveria fazer um grande alarde em torno da sua ótima linha de cereais integrais; a Alpro deveria propagandear alto e bom som a linha de iogurtes e bebidas de soja isentos de açúcar e fortificados com cálcio. Anúncios às barras proteicas Bettery deveriam passar no mínimo com a mesma frequência com que bombas calóricas inundaram os intervalos televisivos deste Natal.

Os custos exorbitantes e injustificados da publicidade garantem que estas e outras marcas tenham de ser descobertas a pulso pelos consumidores. Os orçamentos de anúncios de 2’ e 3’, como aqueles que as operadoras fizeram neste Natal, rondam 1 ou 2 milhões, com os preços de exibição na televisão a poder chegar aos 100 mil euros por minuto.

Existem também produtos que, não sendo marcas, deviam ser amplamente publicitados em narrativas virtuosas e esplendorosas: vegetais, frutas e oleaginosas, por exemplo, com a vantagem de que a fotogenia estaria garantida à partida. Anúncios esses com produção e financiamento do Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável, da DGS. Produzidos a custos razoáveis, fora dos preços estapafúrdios da publicidade. Talento para os realizar não faltaria.

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