Wiriyamu. As negações acabaram, as verdades não

O historiador Mustafah Dhada, que há mais de 20 anos estuda o massacre português de Wiriyamu, Moçambique, há 50 anos, responde ao texto “Wiriyamu: as mentiras e os equívocos” (Observador).

Foto
Uma camponesa passa junto de uma placa evocativa ao massacre de Wiriyamu ANTóNIO SILVA

Faz quase meio século que Portugal deixou a África, tendo lutado contra uma insurreição armada em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique. Enquanto a luta em Angola atraiu rivalidades da Guerra Fria entre as superpotências e seus representantes, a luta em Moçambique tornou-se brutal, quando os insurgentes cruzaram o poderoso Zambeze. Em janeiro de 1973, Amílcar Lopes Cabral foi assassinado, o que resultou na intensificação do conflito na Guiné-Bissau. Pouco tempo depois, a ditadura portuguesa cometeu o Seppuku, que matou duas narrativas falsas de uma só vez. A primeira foi a negação da realidade vivida nas colónias, através de falsidades informacionais “para inglês ver”. A outra era fantasmática, e consistia em alimentar continuadamente os cidadãos brancos portugueses com um mingau de imperialismo idealizado, ou seja, filmes contrafactuais, fotografias e narrativas impressas sobre as “províncias ultramarinas” — agora facilmente acessíveis em fundos de arquivo à guarda da Torre do Tombo e de outros repositórios igualmente importantes.

Obras históricas contemporâneas consideram que o Movimento das Forças Armadas (MFA) libertou Portugal das garras de Caetano. O papel das mulheres, aliás, está retumbantemente ausente na maioria dos relatos contemporâneos sobre a Revolução dos Cravos! A complexa exposição de Portugal às guerras de libertação levou alguns militares a questionar a presença de Portugal em África. Incluído neste grupo estava Spínola, cujo livro, Portugal e o Futuro, deu voz àqueles que sentiam que estas guerras, embora militarmente vencíveis, estavam politicamente perdidas. Um outro evento foi igualmente significativo para acelerar o processo de desagregação do império, então já em curso: a revelação das atrocidades portuguesas em Wiriyamu, que quebrou a credibilidade do silêncio global do regime do Estado Novo relativamente aos abusos dos direitos humanos cometidos por Portugal em África.

Na verdade, é justo dizer que o fim do domínio português em África começou e terminou com violência de massas. Em Moçambique, começou com o massacre de manifestantes que exigiam melhores salários e condições de trabalho, em Mueda, no Norte de Moçambique, em 16 de junho de 1960. E terminou após o massacre de pelo menos 385 civis, no dia 16 de dezembro de 1972, suspeitos de abrigar insurgentes em Wiriyamu.

São vários os trabalhos que abordam a história de Wiriyamu — e a cronologia da sua produção e publicação merece uma breve nota. Os primeiros textos baseavam-se em fontes primárias e documentos publicados. Após a revelação do massacre no The London Times, em 1973, foram levados a cabo alguns trabalhos académicos, até à década de 1980. A partir de então, as narrativas factuais deram lugar a obras de ficção, que preencheram as lacunas dos trabalhos do padre Adrian Hastings, da investigação realizada pelo Comité da ONU, bem como de outras narrativas produzidas por historiadores e jornalistas britânicos e grupos de ativistas anticoloniais.

Foto
Padre Adrian Hastings no lançamento do livro Wiryamu - About the abuses of colonial Portugal, no dia 8 de Maio de 1974, em Munique, Alemanha Keystone/Getty Images

Os discursos militares e de ex-combatentes oscilam entre a negação e a busca de redenção – como bem ilustra um inquérito jornalístico que, uma vez publicado, estimulou a produção de uma série de trabalhos de ficção subsequentes, após a década de 1990. Um outro trabalho, publicado em 2010, colocou os acontecimentos num pano de fundo de convivência entre colonialistas e seus adversários, atentando no quotidiano da região pouco antes de Wiriyamu se transformar em cinzas.

Na sequência do 25 de abril de 1974, em Portugal, as vozes de Wiriyamu ficaram em silêncio — e por boas razões. A história tinha servido o seu propósito. Expôs a conduta de Portugal nas guerras de África e contribuiu para derrubar Caetano. O padre Hastings foi instruído a calar a boca e a deixar Lisboa, onde deveria testemunhar o desenrolar da revolução. Consequentemente, a atenção do público diminuiu e o massacre desapareceu da memória institucional portuguesa, enquanto experiência vivida. O espaço deixado vago pela entropia histórica foi rapidamente preenchido com textos de negação e dúvida. Em certo sentido, Wiriyamu compartilhou o destino de casos semelhantes de violência em massa pré-colonial, colonial e pós-colonial em África, na medida em que a sua narrativa desapareceu da vista do público.

Em 2016, surgiu uma pequena monografia na imprensa académica inglesa sobre o massacre de Wiriyamu. A obra foi um empreendimento colossal. Levou mais de 20 anos de obsessão rankiana para juntar tudo. Misericordiosamente, em outubro do mesmo ano, a editora Tinta da China publicou a monografia em português e enviou uma cópia para o gabinete do primeiro-ministro. O objetivo da edição inglesa era reintroduzir Wiriyamu na historiografia da libertação africana. Mas não era esse o objetivo da edição portuguesa. Aqui o objetivo era triplo: colocar o Wiriyamu no arquivo português como uma experiência indelével e autenticar a veracidade de Wiriyamu na imaginação do público.

Foto
Mustafah Dhada com o seu livro The Portuguese Massacre of Wiriyamu in Colonial Mozambique, 1964–2013, publicado no Reino Unido em 2016 Ricardo Campos

O terceiro objetivo era ambicioso e temerário: galvanizar Portugal para enfrentar seu passado doloroso, e assim conciliar a verdade do massacre com o seu apagamento memorialístico. Em minha defesa, eu tinha motivos para ser imprudente. Soube através dos meus contactos na ONU que, dois meses após a publicação da edição portuguesa, António Guterres se tornaria o nono secretário-geral desta organização. Certamente, com ele nesse posto, os sencientes entre nós agora teriam uma hipótese de exercer pressão direta na ONU para que o governo português reconheça oficialmente Wiriyamu. Um proeminente sociólogo a quem confiei essa esperança advertiu-me com este mot juste: “Vamos esperar para ver!”

A edição em inglês superou os seus objetivos. Ganhou reconhecimento. Seguiu-se uma monografia recentemente publicada sobre relatos de testemunhas oculares. Este ano, Wiriyamu ganhou uma entrada permanente na Oxford Research Encyclopedia of African History. Na história mundial, o massacre português de Wiriyamu no Moçambique colonial é agora um facto e também uma memória dolorosa de uma experiência vivida.

Cinco anos volvidos sobre a edição portuguesa, esta não conseguiu atingir os seus objetivos trifurcados. Não tenho certezas, mas posso tentar explicar esse fracasso. Com a institucionalização do Estado Novo, de Salazar, em 1933, Portugal abandonou a historicidade epistémica. A ditadura, seja ela orwelliana ou kafkiana, geralmente é mais eficaz, quando pode suplantar realidades vividas por paisagens imaginadas. O Portugal salazarista foi uma dessas ditaduras. O seu aparato estatal estava empenhado em localizar grupos de interesse em silos corporativistas, enquanto as redes de repressão do regime sugavam a autodeterminação de parte da sociedade civil portuguesa.

Durante quase meio século, Portugal viveu fora das páginas da história e fora de uma cultura de evidência para discutir tanto o seu passado pré-salazarista como o seu continuum com o presente vivo. Os mais suscetíveis absorveram as paisagens imaginadas fornecidas pelo regime. Dito de outra forma, quando o Estado Novo acabou, a propaganda do regime tinha sido bem sucedida, na medida em que induziu alguns elementos da sociedade civil portuguesa a temer verdades históricas dolorosas e a procurar reconforto em dogmas, preconceitos e narrativas que não se baseiam em evidências.

Foto
À esquerda, António Mixone na primeira fotografia divulgada de um sobrevivente do massacre de Wiriyamu, que foi captada pelo jornalista inglês Peter Pringle; à direita, Mixone fotografado nos anos 1990

Ultimamente, tenho pensado em dois fatores adicionais para explicar por que motivo pode ser doloroso confrontar as memórias de um passado sangrento, sistematicamente documentado. Um no campo do trauma vicário e socializado; o outro relacionado com a redenção e cura. A literatura no campo do trauma socializado sugere que a negação assídua da violência de massas pode bem ser uma decorrência do trauma vicário, do medo de o reconhecer e na ameaça que tal reconhecimento representa em termos de perda de uma determinada visão do passado, particularmente aquele que é habitado por subalternos que agora podem falar.

A redenção e a cura, por outro lado, só podem ocorrer quando a dor e o desconforto de um passado se fixam na alma — veja-se a recente instalação em memória das atrocidades coloniais em Angola. Desenvolvimentos recentes visando transformar os campos de extermínio do Ruanda num empreendimento sustentável ilustram também este ponto, assim como testemunhos publicados e filmes que documentam a frequência e natureza sistemática dos massacres na história contemporânea. Portanto, é apenas pelo recontar constante que é possível combater a amnésia histórica na esfera pública e, por implicação, induzir o engajamento em processos de redenção e cura.

Recontar Wiriyamu é ainda mais imperativo, dada a escassez de arquivos contemporâneos. A resistência à amnésia memorial, portanto, pode bem repousar na leitura ampla e frequente de relatos em primeira mão desse massacre. Caso contrário, o conhecimento sobre Wiriyamu e casos semelhantes de violência colonial de massas em África será vítima da erosão. Foi exatamente isso que os meus textos tentaram fazer — evitar tal erosão de conhecimento.

Tudo o que o texto recente “Wiriyamu: as mentiras e os equívocos” (Observador, 3.11.2022) faz é citar materiais secundários. Alude aos três inquéritos realizados, mas, excetuando um registo de operações militares, não aponta quais os dados neles contidos. O meu trabalho, recentemente publicado sobre a história oral de Wiriyamu, ainda não disponível em Portugal, fornece amplos dados, com os quais se pode situar adequadamente a narrativa de Wiriyamu na história colonial de Portugal.

Por que motivo textos negando, apagando, lançando dúvidas e escarnecendo de fatos relacionados com Wiriyamu despojam de dignidade pessoal funcionários legitimamente eleitos, para defender uma mentira insustentável? Como cidadão português nascido em Moçambique e agora a viver no estrangeiro, acho isto absolutamente desconcertante. Entendo perfeitamente que essa prática era o modus operandi inspirado pela PIDE antes da Revolução de Abril de 1974. Mas agora somos um país democrático e pluralista, uma nação sofisticada de cidadãos pensantes. Independentemente da cor da nossa pele, é tempo de abandonar a discussão acerca da autenticidade das evidências, deixar para trás o partidarismo e os ataques pessoais a figuras públicas, a fim de marcar uma posição. Em última análise, as negações acabaram, as verdades não...

Sugerir correcção
Ler 5 comentários