Para mudar, temos de saber perder

Há situações em que a mudança é uma escolha de vida, mas para mim a mudança foi-me imposta, tornou-se uma questão de sobrevivência.

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"Seja a mudança por vontade própria ou por obrigatoriedade, tem os mesmos mecanismos de escape. Saber perder" DR/ Janosch Lino via Unsplash

Eu estou a tentar aceitar o que perdi. Não estou a dizer que consegui. Estou a tentar. Mas acredito que é este o caminho. Aceitar o que perdi. Perdi “coisas” que para mim são ou eram quase toda a minha vida.

Por dor crónica, não consigo estar sentado ou de pé durante muito tempo. E por isso escrevo-vos deitado, um pouco como a Frida Khalo pintou grande parte da sua vida. Perdi a capacidade de ser médico, perdi a capacidade de socializar num café ou restaurante, perdi a capacidade de fazer alguns desportos e com tudo isto perdi sonhos de viajar e exercer medicina onde ela é mais necessária. Perdi o contacto com o mundo e com os meus sonhos. E o que é um homem sem sonhos? Nada. Sinto que perdi tudo e que vivo numa prisão.

Há situações em que a mudança é uma escolha de vida, mas para mim a mudança foi-me imposta, tornou-se uma questão de sobrevivência. Sim, porque, em vários momentos, senti de uma forma lúcida que perdi a vontade de viver. E por isso não tive alternativa à mudança.

Mas diria que, seja a mudança por vontade própria ou por obrigatoriedade, tem os mesmos mecanismos de escape. Saber perder. E não é fácil, quando vivemos numa sociedade obcecada com a vitória e que nos obriga a querer ter o que não temos. Daí que o desafio de deixar de ter o que já foi nosso se torna ainda maior.

Há dias estive num sítio mesmo muito bonito, nas montanhas, a ver um pôr-do-sol atrás de um castelo e senti-me inebriado pela beleza que me envolvia, o que já não acontecia há mesmo muito tempo. E eu fiquei encravado entre a felicidade do que estava a viver e a tristeza por já não viver um décimo do que vivia. No balanço, acho que estava mais triste do que feliz e estava a ser dominado pela pergunta: “Mas porque é que não te chega o que consegues viver?...” E talvez a resposta seja: “Porque ainda não aprendi a saber perder.”

Esta “doença” da condição humana de querer sempre o que não tem é terrível, mas saber viver com a perda do que já foi nosso e nos tiraram é um desafio quase desumano.

Eu não sou life coach, nem gosto da arte de dar conselhos, que considero muito perigosa, mas posso partilhar o caminho que eu tenho traçado e que me tem feito bem à alma.

O primeiro ponto é o amor. Sentir que tenho ainda muito amor para dar, nem que seja através do teclado, deixa-me com o coração quente.

O segundo é um sentido para a vida. No fundo, são as certezas absolutas que moram dentro da melhor versão de nós próprios. O acreditar que só vale a pena viver por algo que estamos dispostos a morrer. Para mim, é o humanitarismo. Demasiadas pessoas morreram-me nas mãos, e a elas, às suas memórias e aos seus, eu prometi que ia lutar para que o mundo fosse mais justo, mais humano. Mas isto é para mim; para vocês, poderá ser outra coisa qualquer.

Mas luto de uma forma diferente, uma forma reinventada, e muito mudada, em relação a tudo o que perspectivei e agora perdi. Mas é essa chama que arde dentro de mim, essa certeza absoluta, esse sentido para a vida que me ajuda a mudar e a saber perder. Seja de que forma for, só quero sentir o coração a arder e, para isso, precisei de mudar e, para isso, precisei de saber perder.


As crónicas de Gustavo Carona são patrocinadas pela Fundação Manuel da Mota a favor da Médicos Sem Fronteiras

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