Superalimentos azuis: no futuro, vamos produzir comida no mar como fazemos em terra

O biólogo espanhol Carlos Duarte diz que Portugal está particularmente bem posicionado na área da economia azul. E elogia a recuperação dos corais vermelhos e das pradarias marinhas.

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Mergulho de estudo nos recifes de coral no Mar Vermelho, ao largo de Jeddah, Arábia Saudita Lucas Jackson/Reuters

Devemos olhar os oceanos, com as suas gigantescas florestas de algas capazes de capturar carbono, a sua fauna e flora, como uma zona de produção de alimentos à semelhança do que acontece hoje com a cada vez mais esgotada terra, acredita Carlos Duarte. E com uma capacidade única de nos ajudar a combater as alterações climáticas.

A pesca selvagem “vai ser como a caça em terra, uma actividade marginal, quase desportiva”, afirma o biólogo espanhol nascido em Lisboa, especialista em questões de clima e investigador na Universidade Rei Abdullah de Ciência e Tecnologia da Arábia Saudita (KAUST).

“A pesca é muito subvencionada e não é razoável fazer isso com uma actividade que tem impactos ambientais na biodiversidade, nas mudanças climáticas”, explica. “E, como a descarbonização dos barcos é muito complexa, estes vão continuar a ser uma fonte de emissão de gases com efeito de estufa. Não tem sentido, é uma incoerência subvencionar isso quando se está a tentar mudar para energias renováveis.”

Daí que a esmagadora parte dos alimentos que vamos retirar do mar será produzida em aquacultura, à semelhança da forma como são hoje produzidos os animais em terra, acredita o biólogo, que conversou com o PÚBLICO durante o congresso Encuentro de los Mares, que aconteceu no final de Outubro em Huelva e Cádis, e que teve como tema central os Superalimentos Azuis.

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Carlos Duarte é especialista em questões de clima e investigador na Universidade Rei Abdullah de Ciência e Tecnologia da Arábia Saudita LUCAS JACKSON/REUTERS

Mas para que essa aquacultura seja sustentável é preciso introduzir uma série de alterações ao cenário existente. “Tem de ser uma aquacultura não como a que vemos agora, mas realmente sustentável e com uma economia circular, onde o próprio alimento é produzido na criação e não subvencionado por pesca selvagem”, defende o biólogo que ocupa o 12.º lugar na The Hot List, feita pela agência Reuters e reunindo os mais influentes cientistas do clima do mundo.

O mais interessante será “formular alimentação para peixes a partir das algas”. O que se passa actualmente em muitas criações de aquacultura é que estão a usar peixes que poderiam servir para a alimentação humana e a dá-los a outros peixes. “Não tem interesse capturar 22 milhões de toneladas de peixe selvagem, pequenos pelágicos como o carapau, que têm um valor nutricional muito importante e que eram o alimento-base para populações em África e no Sudeste Asiático.”

Basta olhar para os números para perceber a contradição: são 22 milhões de pelágicos para produzir cinco milhões de toneladas de salmões, robalos e outras espécies dominantes na aquacultura. “Isso não é em absoluto sustentável.” Uma alternativa poderiam ser os mictófideos, sobre os quais falou no Encuentro de los Mares a bióloga e também investigadora da KAUST Susana Agustí, casada com Carlos Duarte.

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Alimento para pregado numa exploração de aquacultura em Mira ADRIANO MIRANDA

Vivem na escuridão do oceano, entre os 200 e os 1000 metros de profundidade, são luminosos, e participam naquela que Susana Agustí descreve como “a maior migração que ocorre no nosso planeta em cada dia”, quando vêm até à superfície comer o plâncton e ao amanhecer voltam a descer para as águas fundas e escuras — são os “peixes do crepúsculo”. Poderemos pescá-los? Era esta a pergunta que a bióloga colocava.

Podemos, claro, e usá-los eventualmente para alimentar os peixes produzidos em aquacultura, dado que para a alimentação humana são demasiado pequenos. Mas, sublinha Susana Agustí, como em tudo, é preciso ter em conta o impacto que a captura de grandes quantidades destes peixes pode ter no equilíbrio dos ecossistemas. Neste momento, eles já constituem alimentação para outros peixes selvagens. O que aconteceria se o seu stock fosse drasticamente reduzido? Não há ainda estudos que permitam uma resposta, mas é aconselhável prudência.

A lógica do mexilhão

A criação de algas para a alimentação dos peixes é uma hipótese mais viável e tem outra vantagem — além de serem um habitat para a biodiversidade, contribuem para retirar o dióxido de carbono da atmosfera, funcionando como “um bosque de algas selvagens”.

É certo que há zonas no mar em que assistimos a um crescimento excessivo das algas a ponto de se tornarem uma ameaça para os ecossistemas. Mas isso, explica Carlos Duarte, tem que ver com “a entrada excessiva de nutrientes, fertilizantes agrícolas e esgotos”. O próprio cultivo das algas poderia ajudar a reduzir o problema, mas o fundamental é “diminuir a utilização de fertilizantes na agricultura e fazer o tratamento dos esgotos”.

Toda esta lógica nos obriga a olhar para o mar da mesma forma que olhamos para a terra. “Há 2000 anos que produzimos em terra alimentos de forma controlada, mas no oceano só agora estamos a aprender como se faz.” Afinal, passaram pouco mais de 40 anos desde que a aquacultura industrial apareceu, simultaneamente em dois locais, a Noruega, com a produção de salmão, e as Rias Galegas, com o mexilhão.

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Produção de mexilhão em balsas, em Redondela, Galiza Sérgio Azenha

“São duas aproximações muito diferentes, uma aposta num peixe de alto valor, mas que tem um nível trófico alto, ou seja, é um predador de outros peixes; e a outra aposta num molusco filtrador que está a um nível trófico muito baixo porque se alimenta de plâncton.” Carlos Duarte é claramente um defensor do segundo caminho, “o mais modesto mexilhão, que é uma das espécies mais nutritivas que podemos cultivar no mar”. O contrário, a criação de predadores, equivale ao que em terra seria “estarmos a produzir lobos ou ursos”.

Aquilo a que podemos chamar “superalimentos azuis” não são, portanto, nem o salmão nem o robalo nem a dourada, mas sim “os cultivados a um nível mais baixo, filtradores de plâncton como o mexilhão, a ostra ou a amêijoa”, mas também as algas e animais detritívoros (que se alimentam de detritos) como o pepino-do-mar, muito procurado na China, e as gambas, embora com estas seja necessário algum cuidado porque podem destruir os mangais, um delicado e muito valioso ecossistema natural tropical.

A semântica do optimismo

Carlos Duarte é um optimista, mas esta definição requer uma explicação. “Na comunidade científica e de políticas dos oceanos, temos conversado muito sobre a semântica do optimismo. Eu não sou optimista. Optimista é uma pessoa que diz que tudo vai correr bem, mas sem esforço. Eu estou esperançado, e a esperança é uma visão do futuro enraizada no esforço.” No ano 2000, perante a mesma pergunta — como explica o seu optimismo? — teria tido uma resposta diferente porque “não havia motivo para ter esperança”.

Acontece que de então para cá houve “uma série de mudanças positivas”. Os oceanos, diz, “estão numa nova etapa de recuperação, depois de terem tocado no fundo no início deste século”. As pressões que levam à perda da biodiversidade e à deterioração do estado dos mares “estão a aliviar”, com duas excepções importantes: as mudanças climáticas, “que continuam a ser o maior problema”, e a poluição.

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LUCAS JACKSON/REUTERS

O trabalho que tem vindo a desenvolver prende-se com esta recuperação, mais exactamente com os corais. É novamente útil aplicarmos a comparação entre a terra e o mar. Podemos pensar na protecção dos corais como na protecção das florestas. “É uma boa comparação”, diz Carlos Duarte. “Na terra, há uma iniciativa global para plantar um trilião de árvores, mas no mar, até há pouco tempo, não tínhamos objectivos. Era um esforço mais ou menos individual, aqui e acolá, mas não havia um objectivo global.”

Por isso, está actualmente a trabalhar numa iniciativa global para restaurar os corais nos oceanos. “Vai ser preciso pôr no mar meio milhão de corais para recuperar o que já perdemos. E os corais são mais difíceis do que as árvores, porque são ‘árvores de pedra’, e crescem muito devagar.” A técnica mais comum consiste em criar uma espécie de berçário em terra, mas situado o mais próximo possível do mar.

“Podem-se partir em bocadinhos e esperar que cresçam até uns 10 centímetros e só depois é que as colocamos no mar”, explica Carlos Duarte. “Até já estamos a trabalhar em impressão 3D de corais, porque o mais lento do crescimento é a formação do carbonato e assim podemos imprimi-lo com a forma do coral, implantar o animal vivo no esqueleto e colocá-lo no fundo do mar.”

Em Portugal, também há boas notícias nesta frente. “Tem havido experiências com muito sucesso na restauração de corais vermelhos na Costa Vicentina”, conta, e destaca um nome: Ester Serrão, professora do Centro de Ciências do Mar do Algarve, que “tem tido um papel importante, até pioneiro, na restauração activa de ecossistemas, nomeadamente das pradarias marinhas em locais como o Portinho da Arrábida. Foi um projecto feito há 15 anos, mas lá está a pradaria com os cavalos-marinhos, a reprodução do choco, com tudo a florir.”

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Os oceanos “estão numa nova etapa de recuperação, depois de terem tocado no fundo no início deste século”, diz Carlos Duarte LUCAS JACKSON/REUTERS

Aliás, considera o biólogo, Portugal está muito bem posicionado na área da economia azul — “tem todas as ferramentas para conseguir ser um dos países mais avançados no desenvolvimento de uma agricultura azul sustentável”. Além de que a Ria Formosa é a zona com mais produção de alimento marinho por hectare em todo o mundo.

A restauração de habitats marinhos, sejam mangais, sapais, pradarias submarinas ou outros, é de extrema importância, porque “todos estes ecossistemas têm um papel importante como sugadores de carbono da atmosfera”. Este carbono azul, sublinha Carlos Duarte, “é uma actividade que está a receber grandes investimentos do sector privado, que procura assim atingir os objectivos de neutralidade de carbono”. A Fundação Calouste Gulbenkian, por exemplo, lançou este ano o projecto Carbono Azul para a protecção das zonas costeiras que absorvem carbono da atmosfera e que a acção humana coloca em risco.

E se, em terra, as florestas capturam carbono, os mares fazem-no com uma vantagem: não ardem. “Muitas das florestas que foram plantadas para atingir os objectivos climáticos estão a arder precisamente por causa das alterações climáticas”, lembra Carlos Duarte. “É por isso que o investimento nos sistemas de descarbonização marítimos tem menos riscos. No mar não há fogos.”


O PÚBLICO viajou a convite do congresso Encuentro de los Mares

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