Na Herdade do Peso a terra dobrada é devolvida à natureza

Estudos de solos, criação de corredores de biodiversidade com vegetação endémica, plantações de vinhas com técnicas antigas e vinificações minuciosas - eis o que há de novo na Herdade do Peso.

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Herdade do Peso Rui Gaudêncio

A Toyota sobe e desce colina após colina na Herdade do Peso (Vidigueira), como se deslizasse num parque de diversões. No fundo de cada declive perdemos o norte, mas, no topo, a vista da adega nova (também ela ondulante) orienta-nos no território. Por caminhos de lama, Catarina Santa-Martha, responsável pela viticultura da Herdade do Peso, entusiasma-se a falar dos micro-terroirs da propriedade e dos diferentes projectos que mudam o imaginário de uma vinha alentejana. A lama, o tal entusiasmo e o pé de Catarina no acelerador fazem a pick up bailar de traseira e de frente nas curvas. No interior está Mafalda Guedes (responsável da gestão corporativa da marca Sogrape) e na caixa aberta vão, em modo de equilibristas, Luís Cabral de Almeida, director de enologia para o Alentejo, e João Vasconcelos Porto, director de viticultura da Sogrape. Ninguém foi projectado numa curva, mas por muito pouco.

Em cada paragem numa colina (colina para os urbanóides, mas terra dobrada para um alentejano de bom gosto, desculpem o pleonasmo) o entusiasmo continua, com vários braços a apontar em diferentes direcções para o que já aconteceu e vai acontecer. E é tanta coisa que se poderá resumir assim: cerca de 40% da área da Herdade do Peso vai voltar a ser o que era a paisagem alentejana antes da célebre campanha do trigo nos anos 30 do século passado.

Toda a flora que existe na região será replantada em diferentes espaços de uma área total de 465 hectares (com a flora virá a fauna), sendo que só 160 hectares estão dedicados à vinha. Serão criados inúmeros corredores de biodiversidade, planeados pelo arquitecto paisagista João Bicho. De acordo com João Vasconcelos Porto, o objectivo é “preservar as espécies autóctones (vegetais e animais), criar condições para o aparecimento de auxiliares naturais que reduzam a necessidade de utilização de insecticidas no combate às pragas (cicadelas e ácaros) e demonstrar que quanto mais equilibrado é o ambiente natural, menor é a intervenção humana necessária”. Uma regra básica da agricultura regenerativa.

Discreta e reservada, Mafalda Guedes, que é também responsável da Sogrape para a área da sustentabilidade, manifestou-se perplexa quando tomou conhecimento dos prémios de sustentabilidade recentemente atribuídos a grandes empresas mundiais do vinho (algumas portuguesas). “Não é que os questione, nada disso, mas fui ver por que razões foram atribuídos alguns prémios e registei, espantada, que a Sogrape já utiliza certas práticas, que agora são valorizadas, há muitos anos. E então no que diz respeito à recuperação, manutenção e aumento de área do património natural, bom, nesse caso é desde sempre.”

Luís Cabral de Almeida ajuda à festa. “Quem for à Quinta dos Carvalhais [Dão] vê lá uma mancha de carvalhos enorme. Mas, nessa mancha, só meia dúzia de carvalhos é que são velhos, os restantes foram plantados por nós. Não no ano passado, mas há quase 30 anos, num tempo em que o conceito de sustentabilidade estava por inventar. Eu ainda me lembro de estar com o Manuel Vieira e o senhor Fernando Guedes a estender linhas para fazer as plantações dos carvalhos. E isso porque o senhor Fernando Guedes quis sempre que Carvalhais fosse uma vinha no meio da floresta.”

"Não é a ciência que faz um grande vinho"

A Sogrape tem em execução um Plano Global de Sustentabilidade (nome que Mafalda mudará porque já não pode ouvir a palavra sustentabilidade) que tem como objectivo, até 2027, reduzir 50% das emissões de CO2 das empresas do grupo que operam em diferentes partes do mundo. Mas como esse plano não começou ontem, a nossa pergunta sai assim de rajada: “Uma equipa da Maison Ruinart juntou, em Outubro, dezenas de jornalistas estrangeiros em Portugal para mostrar um plano de reflorestação que vai desenvolver em 40 hectares de vinha em Champanhe. E tudo isso com os melhores especialistas deste mundo. Se a Sogrape tem essas práticas há anos, por que razão não comunica isso aos seus consumidores?”

A resposta, de Mafalda Guedes, revela bem a cultura organizacional de uma empresa gerida por fundadores que acreditavam (se calhar ainda pensam assim) que há certos valores que ou se reconhecem ou nem vale a pena falar deles. “Nunca comunicamos porque sempre fizemos isso. Nada disso é novo para nós. Da reflorestação à produção de energia de fontes renováveis, passando pelos cobertos vegetais, já temos essas práticas há muito tempo. É uma evidência histórica na empresa. Mas, sim, reconhecemos que, hoje, é determinante comunicar o que estamos a fazer.”

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Herdade do Peso Rui Gaudêncio

Nessa estratégia, a Herdade do Peso funcionará como um laboratório integrado da Sogrape, sendo que a ideia é demonstrar que as boas práticas de gestão ambiental conduzem à produção de vinhos de alta qualidade e, em consequência, ao aumento da rentabilidade. Na abordagem, tanto entra a ciência ao mais alto nível como a recuperação de práticas antigas, entre estas a avaliação humana. “Cheguei à conclusão que, quanto mais tecnologia temos – e ela é fundamental – mais energia eu e a equipa gastamos para tomar decisões que julgamos serem as mais acertadas. Tenho muitos anos de trabalho de adega, mas nunca passei tanto tempo na vinha como hoje. Sem provar e sem sentir a natureza eu não consigo fazer um grande vinho. Impossível. Não é a ciência que faz um grande vinho”, salienta Luís Cabral de Almeida.

A ciência clássica veio de França, com uma equipa de investigadores que andou a esburacar a Herdade do Peso por todo o lado, de forma a caracterizar com precisão 12 tipos uniformes de solos, que são hoje determinantes no apoio à decisão de plantação de castas, mas tudo isso convive bem com a observação e a replicação de práticas antigas.

Neste momento estão plantados 8,5 hectares de vinha em sistema de condução em vaso (ou Gobelet), que é o que existe nas vinhas velhas da Vidigueira e noutras partes do país ou de Espanha. Embora muito mais exigente em termos de mão-de-obra, Catarina Santa-Martha sabe que, com este sistema, as plantas vão consumir menos água e vão, pela forma retumbante das varas, proteger melhor os cachos dos raios solares. Com melhores frutos, Luís Cabral de Almeida e Madalena Gonçalves (a outra enóloga da Sogrape no Alentejo) farão melhores vinhos. Como está sempre a repetir directora de enologia, “precisamos de ir ao passado para, hoje, fazermos melhores vinhos”.

A melhoria da qualidade é algo que se sente em toda a gama da Herdade do Peso, mas é notório o esforço de concentração no trio Revelado, Reserva e Parcelas (do Ícone só houve duas edições). Para cada um destes tintos, a tal terra dobrada é determinante, visto que, ao contrário do que acontece noutras vinhas planas alentejanas, as maturações das uvas ocorrem de forma faseada no declive da colina. Parcelas de vinhas são às dezenas, mas em cada colina a vindima é feita em momentos diferentes.

Amor pela natureza

A uma escala menor, é certo, a vindima nesta propriedade alentejana é feita como se de uma vinha de montanha se tratasse. Daqui resulta que, no momento de fazer o lote, os enólogos têm à sua disposição bases com diferentes perfis. Mais ou menos fruta, mais ou menos acidez, mais ou menos estrutura, mais ou menos taninos, mais ou menos álcool, mais ou menos carácter mineral ou vegetal - matéria-prima é o que não falta.

Aliás, nem matéria-prima nem equipamento, visto que Luís Cabral de Almeida tem à sua disposição 162 cubas. Tem mais cubas do que hectares de vinha... sendo que umas poucas são em cimento e formato de ovo (imitação das talhas). Tem uns tonéis de madeira que nos reconciliam com a pureza do vinho e tem, ainda, talhas de barro cujos vinhos funcionam como a especiaria precisa para afinar o lote. E é por isso que estes vinhos premium (e neste lote deveria entrar um branco de talha que infelizmente é pouco divulgado pela empresa) cheiram e sabem a vinho da Vidigueira.

Durante anos, a Herdade do Peso, no universo Sogrape, foi pouco acarinhada. De vez em quando aparecia um vinho soberbo (que saudades temos do Herdade do Peso Trincadeira 1997), mas pouco mais. Com o Trinca Bolotas, que hoje faz 1,1 milhões de garrafas, a herdade volta a entrar no radar dos consumidores. Mas indiscutível é que, a partir da referida trilogia de tintos, tudo muda. E muda porque a junção entre a ciência, o respeito pela natureza e o reconhecimento do saber dos antigos traduz-se em melhor fruta - aquele ingrediente que faz sempre falta nos grandes vinhos.

Quem gere a Sogrape sabe que esta narrativa criada para a Herdade do Peso é um piscar de olho ao consumidor, no sentido em que quer induzir o impulso de compra de vinhos de maior valor àqueles que comungam este amor pela natureza. Não há investimentos grátis. “O único problema é que as árvores e tudo o que vamos plantar cresce mais lentamente do que os nossos desejos e os nossos desenhos no papel”, diz João Vasconcelos Porto, a rir. Mas a diferença entre uma empresa pequena ou média e outra que é líder nacional é que esta pode dar-se ao luxo de investir tranquilamente para muitas gerações seguintes. Ainda faltam à Sogrape 125 anos para chegar à barreira da tranquilidade definida pela baronesa Philippine de Rothschild – acreditemos ou não na petite histoire – mas já faltou mais.

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